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É padre da Arquidiocese de Vitória e Vigário Episcopal para Ação Social, Política

Segundo turno tomado por discursos religiosos fundamentalistas é um absurdo

Todo esse caos que estamos enfrentando não foi causado nem pelos anjos do céu, nem pelos anjos do inferno, mas por nós mesmos e pelas escolhas que fizemos

  • Kelder José Brandão Figueira É padre da Arquidiocese de Vitória e Vigário Episcopal para Ação Social, Política
Publicado em 06/10/2022 às 14h14

A primavera de 2022 chegou, mas ao invés de trazer os bons ventos da renovação, trouxe consigo uma nuvem obscurantista que paira sobre nós, juntamente com o segundo turno das eleições revelando o nível político deplorável a que chegamos no Brasil nos últimos anos.

Os resultados das urnas demonstram que as centenas de milhares de mortes que poderiam ser evitadas durante a pandemia da Covid-19; o vergonhoso retorno do Brasil ao Mapa da Fome, com cerca de 35 milhões de pessoas mendigando cesta básica todos os dias; as mortes por motivações políticas; o isolamento internacional; a apologia à tortura; o culto às armas de fogo e o armamento do “novo cangaço”, com armas legalizadas pelos clubes de colecionadores, atiradores e caçadores; o retorno de doenças há muito erradicadas, como a poliomielite, o sarampo e a meningite; a devastação do meio ambiente; a ameaça constante à nossa liberdade e às instituições garantistas do Estado Democrático de Direito; a falta de decoro no trato com a imprensa; o desrespeito recorrente com os direitos das minorias e as falas machistas, racistas, homofóbicas e xenófobas; os ataques constantes ao conhecimento científico; o sucateamento da saúde e da educação pública e tantos outros males reacendidos nos últimos anos não foram suficientes para ajudar na escolha do presidente do país já no primeiro turno.

No lugar de iniciarmos o segundo turno das eleições discutindo programas políticos para superação dos graves e concretos problemas que enfrentamos, a semana foi tomada por discursos religiosos fundamentalistas, deslocando o debate político para o plano espiritual, povoados de demônios e inimigos imaginários, como se o comunismo, o satanismo, a maçonaria, o arranjo familiar ou o aborto fossem os problemas reais que temos que enfrentar no país.

A disputa política pelo governo do país se tornou uma disputa entre Deus e o diabo, e não entre dois candidatos humanos. O problema é que estão confundindo um e outro, quando, na verdade, nem Deus e nem o diabo estão no meio dessa bagunça e não vão intervir nisso.

Pastores, padres e fiéis ensandecidos ocupam as redes sociais com as mais bizarras reflexões, demonstrando a ignorância do conhecimento teológico, da palavra de Deus ou da doutrina da Igreja, reforçando a venda colocada nos olhos dos pobres para que não enxerguem a verdade que a realidade mostra.

Em vez de investirmos nosso tempo em reflexões sérias sobre o futuro do país, formulando propostas concretas de retomada das políticas públicas para melhorar a vida do povo, caímos no diversionismo, discutindo sexo de anjos e chifres de demônios, enquanto a tragédia da vida real dos pobres só aumenta. A que ponto chegamos! Quem poderia imaginar que em pleno século XXI teríamos reflexões tão tacanhas, rasas e reducionistas, com o fundamentalismo religioso, o proselitismo barato e o banditismo definindo o rumo político do país.

O fato é que mesmo antes de passar o segundo turno eleitoral, temos que nos lembrar que, independentemente de sermos católicos, protestantes, pentecostais, neopentecostais, espíritas, candomblecistas, umbandistas, budistas, judeus, maçons, gnósticos, ateus ou qualquer outro aspecto subjetivo de nossas escolhas, somos brasileiros, vivemos embaixo do mesmo céu e temos que conviver harmonicamente uns com os outros.

A base de um país civilizado é o respeito ao outro e à diversidade da vida e das escolhas que todos devem ser livres para fazer, sem ferir a vida em sociedade. Temos um país para reconstruir, um tecido social para ser remendado, e não será nem Deus e nem o diabo que vai fazer isso. Somos nós, pessoas de carne e osso que teremos que fazê-lo. Afinal, todo esse caos que estamos enfrentando não foi causado nem pelos anjos do céu, nem pelos anjos do inferno, mas por nós mesmos e pelas escolhas que fizemos. Portanto, somos nós os responsáveis por criar caminhos que possam diminuir os males e as desgraças que nós mesmos produzimos.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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