Imagine a seguinte cena: você chega à repartição pública com todos os documentos para dar entrada naquilo que tanto precisa. O servidor, de cara amarrada, dá uma olhada na “papelada” que você colocou em cima da mesa, dentro de uma pasta azul de elástico. Logo, identifica algum problema do tipo: “Essa cópia precisa ser autenticada” ou “esse reconhecimento de firma foi feito por semelhança, a gente só aceita se feito por autenticidade”.
As exigências são tão criativas, que você precisa anotar letra por letra o que o servidor falou, pois nem sequer sabia que havia mais de um tipo de reconhecimento de firma. E, assim, sabendo que não adianta discutir, segue para cumprir essa exigência.
Você já protagonizou alguma cena parecida? Pois é, infelizmente, essa é a cultura que prevalece no serviço público e em muitos dos servidores.
Lembro-me que, após alguns anos de estágio em escritório de advocacia, tive aulas de Direito Administrativo, em que o professor explicou os tantos deveres constitucionais do servidor público, que, afinal, estava ali para (como o próprio nome diz) servir à população. Foi um choque. Até então, eu nunca havia pensado nos servidores públicos dessa maneira, pois não é assim que se comportam.
Também lembrei das numerosas vezes em que havia, na porta da repartição, uma plaquinha com o alerta de que “desacatar servidor público no exercício da função constituía crime, nos termos do art. 331 do Código Penal”. Lembrei, ainda, de quase nunca ter visto os deveres constitucionais observados na prática, nem mesmo alertas afixados em lugar nenhum. Já as lojas e comércio em geral são obrigados a manter um exemplar do Código de Defesa do Consumidor para consulta.
Quando se fala em modernização do Estado, então, não consigo pensar em algo mais simples, porém mais transformador, do que a mudança de cultura do serviço público.
A classe dos servidores públicos só tem razão de existir para prestar um serviço de utilidade pública aos cidadãos em geral. Seus (altos) salários são pagos com um dinheiro que é tirado à força dos cidadãos. Isso porque o Estado não produz riquezas, de modo que, para se financiar, conta com aquelas riquezas apropriadas de quem as produz: o cidadão.
Hoje em dia, muito se fala em revolução digital, mas o que o Estado precisa é, sobretudo, de uma revolução cultural. É necessário que os operadores da máquina pública enxerguem que eles devem trabalhar para e com os cidadãos.
Faz-se mister que, ao invés de arranjarem um problema para cada solução trazida pelos indivíduos, a administração pública passe a adotar uma postura mais colaborativa.
É importante substituir a cultura da legislação complexa, das “pegadinhas” e da cultura da multa – no município de Vitória, por exemplo, até pouco tempo atrás, os fiscais recebiam um percentual de cada multa que aplicavam, o que, por óbvio, incentivava essa conduta –, pela cultura da transparência, do esclarecimento e da conscientização, pois o Estado só existe por causa dos cidadãos e para servi-los.
Portanto, a revolução digital é, sobretudo, cultural. É certo que a utilização de novas tecnologias, de meios digitais e a preocupação com inovação em muito fomentam a melhora nos serviços públicos e o acesso do cidadão aos órgãos e repartições, mas é somente com a mudança de mentalidade que vem a verdadeira transformação.
Desejo que cada vez mais o Estado e aqueles responsáveis por seu funcionamento reconheçam a importância de trabalhar junto com o cidadão, pois é quem, afinal, justifica e garante, inclusive financeiramente, sua própria existência.
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