Durante uma visita à Galleria degli Uffizi, famoso museu de artes em Florença, Itália, deparei-me com uma exposição curiosa sobre o sistema financeiro da Roma Antiga, cujo título era “Pecunia Non Olet”. Essa expressão latina, que talvez não tenha tanta importância para quem não é da área do Direito Tributário, significa, para o tributarista atento, a fome desenfreada do governo para arrecadação.
Para compreender melhor essa expressão, retrocedemos à Roma Antiga, sob o Império de Vespasiano, que governou Roma de 69 a 79 d.C. Naquela época, as finanças públicas estavam deficitárias e o imperador, preocupado com a situação, instituiu um tributo sobre a urina que era coletada nos banheiros públicos.
Essa medida foi mal-recebida, inclusive por Tito, filho de Vespasiano, que a considerava vergonhosa. Em resposta às críticas do filho, Vespasiano mostrou-lhe uma moeda e perguntou se o cheiro o incomodava. Diante da negativa de Tito, proclamou a célebre frase “Pecunia non olet”, significando que o dinheiro não tem cheiro.
No contexto contemporâneo, essa expressão é ainda empregada, agora como um princípio tributário, justificando a tributação de qualquer receita, independentemente de sua origem, lícita ou ilícita. O que importa é se o sujeito gerou riqueza e, portanto, deve pagar tributos. Essa é a realidade quando o objetivo é saciar a fome do leão, até mesmo em casos de participação nos lucros de um crime.
Por outro lado, quaisquer esforços para moderar essa avidez fiscal são rapidamente desmantelados pela impetuosidade repleta de ilegalidades e inconstitucionalidades. Isso se evidencia com a Medida Provisória nº 1202/2023, que, surpreendentemente, revogou o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), eliminando a alíquota zero que tanto contribuiu para a retomada econômica do referido setor após a pandemia.
O que era um alívio em meio à tempestade não resistiu à voracidade do Fisco em onerar os que mais necessitam de apoio. A União justificou o término do programa pelo fato de que a adesão superou as expectativas, reduzindo a arrecadação e tornando imperativa a sua revogação.
Mas, afinal, o que é o Perse? É o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos, criado pela Lei 14.148/2021, que reduziu a zero as alíquotas de IRPJ (imposto sobre a renda de pessoas jurídicas), CSLL (contribuição sobre o lucro líquido), PIS e Cofins, tendo o prazo de 60 meses de duração, com o claro objetivo de auxiliar a retomada econômica do setor de eventos. Sabe-se que tal programa foi de grande valia para todo o setor, pois trouxe alívio fiscal, manutenção do fluxo de caixa, incentivo à retomada das atividades, preservação de empregos e estímulo ao consumo.
No entanto, emerge a questão: o término antecipado do Perse tem fundamento constitucional e legal? Tecnicamente, não. A Medida Provisória, por mais que seja necessária para atender à flexibilidade que a realidade exige, deve respeitar as balizas estabelecidas pela Constituição Federal para não se tornar um instrumento de violação de garantias constitucionais, sobretudo no âmbito tributário.
Nesse sentido, o artigo 62, § 2°, da Constituição Federal estipula que Medida Provisória que implique instituição ou majoração de impostos deve ser convertida em lei no mesmo exercício financeiro em que for editada. Assim, a revogação do Perse é inconstitucional por vício formal, pois a referida MP não foi convertida em lei no mesmo exercício financeiro de sua edição, que se encerrou em 31 de dezembro de 2023.
Outro fato que merece questionamento acerca da (in)constitucionalidade é a inexistência, no presente caso, de relevância e de urgência, critérios intrínsecos para a validação de uma Medida Provisória, conforme salientado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4717. A pressa em revogar um programa benéfico, sob o pretexto de uma suposta necessidade de ajuste fiscal, não parece justificar o desrespeito ao devido processo legislativo e merece ser declarada inconstitucional conforme a jurisprudência da excelsa Corte.
Além disso, a MP contraria o direito adquirido dos contribuintes, protegido pelo artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, e pelo artigo 178 do Código Tributário Nacional, que veda a revogação de isenções concedidas com prazo certo e sob determinadas condições antes de sua expiração natural. Apesar de argumentações contrárias, a redução da alíquota à zero por cento, na prática, representa uma isenção fiscal. Paulo de Barros Carvalho, renomado professor, ensina que, independentemente da denominação, tais normas se qualificam como isenções devido ao efeito prático que exercem.
Realmente, o dinheiro não tem cheiro, mas tem dono, mesmo oriundo da mais pútrida fonte, é purificado no altar do “imperador”. Mas quem diria! Essa mesma expressão, que, nos tempos de César, servia para maquiar o odor da ganância, agora é invocada para justificar a insaciável sede do Fisco. E como um ator que deixa o palco antes do ato final, o Perse é abruptamente retirado de cena, não por falta de mérito, mas pela inesperada voracidade de um Fisco que, qual harpia, reclama a sua presa.
E quanto à inconstitucionalidade da revogação, a União, em sua ânsia, parece ter ignorado os sagrados textos constitucionais, como quem, em um jantar, dispensa os talheres e ataca o banquete com as próprias mãos. A Medida Provisória, essa misteriosa figura que surge nos momentos mais inesperados, não pôde resistir ao charme das formalidades constitucionais e cedeu, talvez, ao impulso de simplificar a complexa trama legislativa.
Dessa maneira, o desfecho deste ato revela-se não apenas inesperado, mas repleto de ironia. Com a revogação do Perse, assistimos ao espetáculo de um governo que, esquecendo-se da melodia harmoniosa da legalidade, dança agora ao som de uma música dissonante, composta de urgências questionáveis e relevâncias duvidosas.
O capital, esse ator principal, é obrigado a deixar o palco antes do previsto, e o público, ainda atônito, indaga-se sobre o verdadeiro enredo por trás da cortina, sendo a única certeza a constante incerteza dos atos dos que manejam as cordas do poder. Pecunia non olet, mas o Fisco, ah... esse parece não se furtar de exalar o aroma das urgências que, como todos sabemos, são muitas vezes mais imaginárias do que reais.
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