Os terraplanistas não são o outro lado do debate sobre a Terra e o Universo; os fascistas não são o outro lado do debate sobre democracia; os racistas não são o outro lado do debate sobre diversidade; os machistas não são o outro lado do debate sobre direitos da mulher. Os antivacinas não são o outro lado do debate sobre política de saúde pública e imunização contra doenças pandêmicas e epidêmicas. Não são eles quem devem ser confrontados e derrotados, porque não há o que derrotar, do ponto de vista da racionalidade, em suas ideias.
Na universidade, quando um candidato ao título de mestre apresenta a sua dissertação, ele é avaliado por doutores, isto é, por profissionais com experiência e formação mais extensa que a dele. E por quê? Porque um debate não tem como finalidade anular ideias nem destruir pessoas, mas contribuir para a coletividade.
A crítica não é oposição, mas análise profunda sobre algo e a apresentação de considerações sobre uma obra ou sobre um feito, com o propósito de aperfeiçoá-la e não de cancelá-la. A condição para ser avaliado pela banca, no entanto, é passar por um processo de qualificação, no qual os fundamentos da Ciência são aferidos para que o trabalho possa ser discutido a partir de uma base comum.
O grande desafio do século XXI é que, com as redes sociais, milhões de pessoas sem qualquer informação ou senso crítico, sem nem ao menos noção do que distingue um fato de uma opinião, têm agora voz para apresentar suas considerações, mesmo que totalmente desprovidas de qualquer fundamentação. E como são muitas, essas vozes ecoam e fazem um ruído danado, a ponto de atrapalhar os debates consequentes e balizados. Aliás, esse barulho chega ao ponto de abafar os debates consequentes e balizados.
Assim, as vozes dos especialistas e suas trocas de informações e posições, todas elas pertinentes e capazes de gerar sínteses produtivas e importantes na solução de problemas graves para a coletividade, são atravessadas por manifestações de grupos de pessoas que constituem tribos cada vez mais numerosas, cujo propósito principal é o de se unirem em torno de uma ideia qualquer, muitas vezes delirante, capaz de dotar essas pessoas, enfim, de uma identidade pública.
O desastre é ainda maior porque a nossa democracia representativa não é dotada de anteparos para frear o salto para dentro da política desses grupos de neoativistas parvos. Assim, quando um político esperto percebe a chance de cooptar esses grupos, prometendo governar com eles e com suas teorias, temos então o século XXI acontecendo.
Mas apesar da força alcançada por esses grupos - felizes em impor suas opiniões e indiferentes às consequências delas, desde que implique em uma diminuição da importância dos cientistas, intelectuais, artistas, professores, jornalistas -, os fatos continuam a ser os fatos: a terra é redonda, o Brasil é um país desigual e morrem milhares de negros e de mulheres vítimas de crimes raciais e machistas.
Logo, a luta por civilidade e democracia tornou-se apenas mais complexa, pois, além de enfrentarmos os terríveis índices de violência e desigualdade social, agora precisamos nos desenredar dos obscuros pregadores de teorias da conspiração e ressuscitadores de mantras medievais.
E o primeiro passo dessa jornada é não cair na armadilha do falso debate: terraplanistas, fascistas, racistas, machistas não são “o outro lado” do que propomos: republicanismo, democracia, liberdade, tolerância, saúde pública etc. Não cabe a nós o ônus da prova sobre os fatos. Não podemos dispersar tempo e recursos para responder sobre o nada, sobre coisa nenhuma. Apesar de as "redes sociais terem dado voz a todos os idiotas”, como disse o pensador italiano Umberto Eco, não nos cabe responder a essas provocações, mas continuar nosso trabalho, lançando sementes da ciência em todos os campos. Se a violência das queimadas e do aquecimento climático não nos pegar de jeito, haveremos de encontrar ainda algum solo fértil para germinar novas e saudáveis plantas.
O autor é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo
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