Nesta segunda-feira (6), Vila Velha comemora pela primeira vez o Dia do Chorinho Canela-Verde. O Choro (ou Chorinho) é um gênero de música instrumental urbana que nasceu no Rio de Janeiro, adaptando o repertório europeu com um sotaque próprio. A ele estão ligados alguns dos maiores nomes da nossa música como Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e tantos outros.
O dia 6 de setembro foi escolhido por ser o aniversário de Maria José Pinto da Vitória, conhecida como Dona Maria do Bandolim, falecida em 1988 aos 81 anos. A instrumentista fez parte da vida musical de Vila Velha por décadas, sempre acompanhada do instrumento que acabou incorporado ao seu nome artístico.
O bandolim surgiu na Itália e figura na música barroca de Vivaldi e em óperas clássicas como o Don Giovanni de Mozart, mas foi na música popular que encontrou seu espaço mais ilustre. O instrumento teve um momento de grande divulgação na virada do século XIX para o XX quando se espalhou pelo mundo através de músicas de dança, principalmente por influência francesa e italiana.
Essa moda detonou uma explosão de músicos e grupos amadores, concursos, publicações especializadas e fábricas de bandolins que levou o instrumento a se espalhar pelo planeta e rapidamente se misturar com as músicas locais. Hoje o bandolim está presente no country norte-americano, no rock, em orquestras no Japão, no repertório erudito, na música indiana, irlandesa, portuguesa e, claro, na brasileira, principalmente no Choro.
A partir da década de 1890 o bandolim se espalhou pelos círculos musicais, principalmente os amadores, em todo o Brasil. No Espírito Santo eram muitos os professores do instrumento, como Euclides Ribas de Menezes (afinador de piano e professor de bandolim e violino), Colombo Guardia, Assis Bandeira (bacharel em direito que lecionava português, francês, inglês, aritmética, música, piano, violino e bandolim) e Conceição Marisson.
Essa última apresentou em maio de 1905 no teatro Melpômene a "Retraite marche", clássico do repertório francês, em duo com seu marido, o também bandolinista, Álvaro Marisson. O bandolinista de maior destaque na imprensa capixaba nesse período foi Elpídio Barbosa, instrumentista, professor e compositor que participou ativamente do circuito cultural da Capital. Além das atividades pedagógicas e como concertista também era afinador de pianos (atendendo em um sobrado na rua General Osório) e compunha desde música religiosa a valsas e dobrados que eram executados pela Banda do Corpo Militar de Polícia do Estado. Em 1917, Elpídio Barbosa foi um dos destaques em um banquete oferecido ao importante político Jerônimo Monteiro.
REFINAMENTO CULTURAL
Nessas primeiras décadas do século XX o bandolim ainda não era tão fortemente ligado ao Choro, gênero associado à boemia das classes médias e baixas. Pelo contrário, estava relacionado ao refinamento cultural de influência francesa e tido como um instrumento adequado às moças da alta sociedade.
Além disso, era uma opção mais barata em relação ao piano, até então o instrumento que dominava os círculos amadores femininos. Ou seja, atendia também às famílias de menos recursos, mas que queriam mimetizar os hábitos da elite econômica. É nesse cenário que surge então uma geração de mulheres bandolinistas, a maior parte amadoras e destinadas ao injusto esquecimento pelos livros de história.
AS MULHERES E O BANDOLIM
O destino reservado às moças bem-educadas era o casamento, com o qual normalmente cessavam as atividades musicais. Poucas se firmavam na prática profissional da música, como é o caso de Maria Amelia de Paiva, portuguesa de nascimento que se destacou no cenário musical carioca como bandolinista, pianista, harpista, cantora, regente, professora e compositora, entre as décadas de 1900 e 1930.
A história de Dona Maria do Bandolim se conecta diretamente a essa tradição feminina do bandolim, assim como as trajetórias de Dona Petinha (fundadora do grupo Bandolins de Oeiras, Piauí), Dona Mazé (Ceará), Dona Maria (Mato Grosso do Sul) e Ita do Bandolim (Goiás).
Nascida em Vila Velha em 1907, Maria José se casou aos 15 anos com Tanego Piratininga de Barros, que seria seu parceiro também na música. O casal se apresentava nos clubes da cidade (como os famosos Democráticos e Fenianos), eventos beneficentes ou religiosos e em acompanhamento de peças teatrais e filmes do cinema mudo. Dona Maria também deu aulas de bandolim e após a morte de seu marido formou o Regional Recordar é Viver.
SERENATA DE AMOR
Também em Vila Velha, outro bandolim estava destinado à fama muito além do mundo da música. Na década de 1940 um jovem italiano costumava fazer serenatas à noite para sua namorada, acompanhado por seu bandolim. O cunhado da moça era Henrique Meyerfreund, fundador da Chocolates Garoto e quando lançou um bombom novo em 1949 homenageou o casal de apaixonados. O bombom era o Serenata de amor, um dos maiores símbolos da cidade e patrimônio afetivo dos canela-verdes.
O bandolinista enamorado era Ugo Musso, famoso fotógrafo que adotou o Espírito Santo como sua terra e hoje é nome de uma das mais importantes ruas de Vila Velha. A musa de suas serenatas, Úrsula, viria a ser sua esposa e companheira até sua morte precoce em 1978, aos 55 anos. Durante alguns anos a embalagem do Serenata trouxe o desenho de um bandolim, em referência à origem de seu nome e à homenagem ao casal.
CONEXÃO FAMILIAR
Hoje o bandolim de Dona Maria está na Casa da Memória de Vila Velha e o de Ugo Musso no Centro de Documentação e Memória Garoto. E Vila Velha ainda abriga outro bandolim, cuja importância histórica pode não ser tão grande quanto os demais, mas de valor afetivo sem medida para mim: o bandolim de meu avô Fernando Duarte. Nascido em 1913 em Muniz Freire, começou sua formação musical na banda da cidade, a Sociedade Musical Lyra Democrática, da qual obteve sua diplomação oficial como músico aos 13 anos. Começou a tocar bandolim ainda na adolescência, mas depois de alguns anos se viu sem instrumento e só voltaria a ter um no fim da década de 1970, o Giannini que veio a ser o meu primeiro bandolim.
Na antiga Vila Velha, quando era mais fácil as famílias se conhecerem e a vida social passava pelas cadeiras na calçada e as visitas após o jantar, a música era um elemento importante e o bandolim um instrumento bastante presente. Os Barcelos (família da minha avó) eram vizinhos de Dona Maria, que ensinou bandolim à minha tia-avó Odete. Da parte dos Duarte também minha tia-avó Balbina tocava bandolim.
Mesmo nas festas de família da minha infância os discos de Roberto Carlos, Chico Buarque e Beatles dividiam o espaço com a música feita ao vivo, com violões e bandolins e cantoria de todos. Em uma foto do aniversário de 90 anos do meu tio-avô Clementino Barcelos (Mestre Clê, agitador cultural, sempre à frente de teatros, quadrilhas e festas) ele aparece acompanhado de Dona Maria do Bandolim, provavelmente cantando "O sole mio", a favorita de seu repertório.
O bandolim do meu avô passou para minhas mãos e com ele me iniciei no estudo do instrumento que hoje é objeto central de meu trabalho, estudo e devoção. Hoje a facilidade de acesso à informação permite o acúmulo de contribuições musicais de diversas épocas, tradições e gêneros que se soma ao reforço ao time dos bandolinistas de músicos geniais como Armandinho, Joel Nascimento e Hamilton de Holanda.
O repertório muda, o jeito de tocar muda, mas o resgate da memória musical e de suas figuras nos faz entender o chão em que estamos pisando. É a consciência do pertencimento à uma cultura que nos permite seguir a caminhada levando o bandolim, a música e a história dos que vieram antes.
Que o Dia do Chorinho Canela-Verde e a homenagem a Dona Maria do Bandolim sirva de incentivo para outras iniciativas semelhantes!
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(Agradeço ao Instituto Histórico e Geográfico de Vila Velha - Casa da Memória, em especial ao pesquisador Gehter Lima, pelo esforço na preservação da lembrança de Dona Maria do Bandolim e pela generosidade em compartilhar essas informações.)
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