Vitória é uma cidade rodeada pelas águas, o que a torna um lugar de muitos fluxos, de pessoas, informações, ideias e mercadorias. E isso se deve ao fato dela ser arquipélago e também porto, permitindo o cruzamento da comunicação com diversos territórios e a sua expansão para além de suas margens. Mas o que significa viver nessas águas sem reconhecer as tradições que a constituem?
A cidade que tem o píer de Iemanjá e celebra em fevereiro a Senhora das Águas (Lei 10.003/2023), graças às movimentações históricas e coletivas, como o protagonismo da mãe Néia e dos povos de terreiro, é um território banto. Afirmo isso para guiar vocês, leitores(as), pelos caminhos que vou me enveredar agora.
Os povos banto trouxeram para o Brasil uma forte relação com os antepassados e os espíritos da terra. Por isso, nos terreiros de umbandas e candomblé angola, cultuamos os caboclos. Pelo respeito que temos aos povos originários dessa terra. Vocês já ouviram falar na Curva da Jurema? Por que a chamamos assim? E nos sambaquis que existiram – e, provavelmente, existem – nesta ilha? Coloco essas perguntas mais no sentido de aguçar o olhar para o território do que no intuito de respondê-las.

Diante disso, retomo meu olhar para Iemanjá, e penso o que é ter como símbolo da cidade uma imagem de uma divindade negra, da diáspora africana, hibridizada com nossa senhora. Eu não poderia pensar de outra forma senão na influência das ontologias banto em nossas práticas culturais.
Conhecedores do catolicismo, mesmo diante de toda violência da escravização, os banto chegaram ao Brasil compreendendo os cultos católicos e transformando-os. São Benedito, Santo Antônio, São Pedro, Nossa Senhora da Conceição da Praia e por aí vai. Não à toa, surge daí o catolicismo preto, preconceituosamente chamado de catolicismo popular.

Estamos diante da presença de uma grande mãe, zeladora de todas as cabeças, que provém toda a vida marinha, tão importante para o equilíbrio das vidas humanas e não humanas do planeta. Vitória é uma cidade com um vínculo indissociável com as marés, que se materializa na existência de um estuário, das praias e dos manguezais.
Para nós, povos costeiros-marinhos, pescadores, marisqueiras, trabalhadores e trabalhadoras do mar, a cidade é um maretório, pois aprendemos a ler os ventos, os céus e as dinâmicas das águas. Celebrar Iemanjá é reconhecer a nossa matriz africana e recobrar o vínculo profundo que temos com as águas. Vivemos em uma cidade banto.
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