Imunizante que deu o início simbólico da vacinação contra Covid-19 no Brasil, a Coronavac pode estar com seus dias contados. Desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac e produzida por aqui pelo Instituto Butantan, ela teve papel essencial no começo da vacinação, representando 85% das doses aplicadas em março de 2021, por exemplo. Aos poucos, porém, foi perdendo espaço para outras marcas e encerrou o ano passado respondendo por menos de 10% das aplicações no país.
Agora, essa taxa pode diminuir ainda mais. Isso porque na segunda-feira (18) o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou que o uso do imunizante passará a ter seu uso restrito apenas para crianças e adolescentes de 5 a 18 anos, retirando a vacina do Programa Nacional de Imunização (PNI) para os adultos.
Além disso, estudos apontam que a eficácia da Coronovac como dose de reforço contra nova variantes, como a delta e a ômicron, tende a ser menor que a de outros fabricantes. Assim, o uso dela em novas campanhas de vacinação tem sido descartado pelo governo federal e mesmo pelos estados, exceção a São Paulo.
Isso, por exemplo, paralisou ainda em 2021 os planos do Butantan de produzir mais doses em uma nova fábrica -cerca de 18 milhões de doses do imunizante estão paradas no instituto desde então.
Segundo Queiroga, a mudança ocorre porque a Coronavac não tem registro definitivo de uso no Brasil na Anvisa. Como a pasta anunciou no domingo (17), com o fim do estado de emergência da pandemia, apenas os imunizantes que possuem o registro definitivo ainda poderão ser aplicados.
A Coronavac poderá continuar a ser aplicada no chamado esquema primário, ou seja, quando a pessoa ainda não tomou outro imunizante contra a Covid. Atualmente no Brasil, porém, quase não há adultos que estão nesta situação, apenas crianças e adolescentes.
O próprio ministro já adiantou que vai pedir à agência que prorrogue por mais um ano a autorização do uso da Coronavac para pessoas de 6 a 17 anos -a Anvisa ainda não se manifestou sobre isso. O uso nessa faixa etária foi inicialmente concedido pelo órgão no início de 2022.
Em nota, o Instituto Butantan disse que não recebeu informações sobre a alteração do estado de emergência sanitária ou em relação a qualquer diretriz pública, e que pretende produzir a vacina em sua nova fábrica em 2023. Ainda, disse que "segue em tratativas com a Anvisa para que o uso da Coronavac seja estendido a todo o público, incluindo crianças de 3 a 5 anos".
Para Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a nova recomendação do Ministério da Saúde é correta, e foi corroborada pela Câmara Técnica de Assessoramento da pasta. "Com o avanço da vacinação, dificilmente vai existir um adulto que não recebeu nenhuma dose do esquema primário. Portanto, é certa a decisão de manter esse imunizante para o público pediátrico", diz.
Para Kfouri, o imunizante deve encontrar dificuldades em obter o registro definitivo da Anvisa. Por isso, caso não haja interesse do governo em obter mais doses para a vacinação infantil, não faz sentido que a Coronavac seja comprada no futuro.
"O registro definitivo foi obtido após apresentação de estudos clínicos publicados, e a Sinovac não tem interesse em dar continuidade a esses estudos. Por isso, acho difícil que essa seja uma vacina incorporada no rol definitivo no país", avalia.
A Anvisa informou, em nota, que são as empresas produtoras que devem pedir o registro definitivo, e que até o momento o Butantan não fez o pedido.
Durante a pandemia, o uso do imunizante foi repleto de altos e baixos, e ele acabou sendo alvo de uma disputa entre o então governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o presidente Jair Bolsonaro (atual PL).
Ainda em 2020, o anúncio da compra pelo governo paulista gerou reação do governo federal, que primeiro negou a inclusão dela no plano nacional. Depois, o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello disse que iria comprar 46 milhões de doses da Coronavac, mas foi desautorizado no dia seguinte pelo presidente.
Assim, a vacina demorou mais dois meses para ser incluída no PNI, o que só aconteceu em 15 de dezembro de 2020.
Mas as dificuldades continuaram. Doria, que atualmente é pré-candidato à presidência, anunciou que iniciaria a vacinação em São Paulo com a Coronavac em 25 de janeiro de 2021, dia do aniversário da cidade, sem antes ter a autorização da Anvisa.
Naquela época, a agência aguardava a conclusão dos ensaios clínicos de fase 3 do imunizante, conduzidos no Brasil com 12 mil participantes. O problema é que o estudo não atingia o número mínimo de casos necessário para calcular a taxa de eficácia.
Assim, foi só em 7 de janeiro de 2021 que a eficácia da vacina de 50,38% foi anunciada, a dez dias da data marcada para a Anvisa analisar uma possível autorização emergencial. Em meio à guerra política, Bolsonaro ironizou o valor relativamente baixo comparado aos outros imunizantes.
Mesmo assim, a Anvisa concedeu a autorização para a vacina em 17 de janeiro de 2021. Minutos depois do anúncio, a enfermeira Mônica Calazans, que trabalhava na UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (em São Paulo) foi a primeira pessoa em território nacional a receber a Coronavac.
Logo o imunizante passou a ser aplicado em milhões de pessoas em todo o país, sendo a principal vacina utilizada nas primeiras etapas da campanha nacional, que incluiu profissionais de saúde e idosos.
"A Coronavac salvou milhões de vidas no Brasil e foi muito importante, e ainda acho que ela poderia continuar sendo utilizada a nosso favor", diz Gustavo Cabral, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Foi graças à vacina que o país reduziu a média móvel de mortes entre janeiro e maio. Além disso, o estudo desenvolvido pelo Butantan em Serrana, conhecido como Projeto S, apontou uma efetividade (eficácia em vida real) de redução em 95% de mortes por Covid.
"Esse estudo foi fantástico, e são esses os dados que o Butantan deveria ter apresentado à Anvisa para obter o registro definitivo", analisa Cabral.
Contudo, a chegada de novas variantes, principalmente a delta e a ômicron, abalou a eficácia de todos os imunizantes, e a queda parecia ser maior com vacinas inativadas, caso da Coronavac.
Por conta disso, começou a ser recomendada a aplicação de uma terceira dose em maiores de 60 anos a partir de setembro. O Ministério da Saúde recomendou que o reforço fosse feito preferencialmente com Pfizer, AstraZenca ou Janssen -que têm mais eficácia como reforço- , mas o governo paulista decidiu manter o uso da Coronavac nos mais velhos.
A falta de dados de eficácia em idosos contra as novas variantes e os estudos demonstrando efetividade mais baixa nesse grupo começaram a levantar novamente questionamentos sobre o uso da vacina nessa população.
Para os especialistas, o uso do imunizante como reforço nos mais idosos não deve ser estimulado, e por isso seu uso arrefeceu. "São Paulo errou novamente ao anunciar a quarta dose para maiores de 60 anos com 'qualquer imunizante disponível'", avalia Kfouri.
Cabral reforça que o importante seria incluir todos os imunizantes disponíveis. "Não vamos controlar a pandemia só com a vacinação de um grupo x ou y, mas de todos. Para isso, somar as tecnologias [vacinais], e não excluir, me parece uma melhor estratégia."
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