O humor do brasileiro azedou diante da pandemia. Com o distanciamento social, praticado em diversos países ao redor do mundo, vieram mudanças de hábito e alterações profundas de rotina que se refletem nos mais variados aspectos do dia a dia -um deles é a música.
Pessoas deixaram de ouvir discos inteiros ou playlists a caminho do trabalho, a fome por informação aumentou o acesso a podcasts e o consumo de música ambiente -usada para relaxamento- e até das infantis cresceu nesses meses.
Entre os sucessos, as canções mais tocadas no país, a mudança foi de ânimo. Menos hits dançantes chegaram ao topo das paradas, e uma tristeza suave foi tomando conta das listas de mais tocadas.
Um levantamento feito pela reportagem, analisando as músicas que chegaram ao Top 200 do Spotify em 34 países, mostra que o Brasil é onde a variação de tristeza foi maior desde o começo da quarentena. Na prática, a lista de mais tocadas do país foi a que mais entristeceu neste período.
A métrica usada para medir a tristeza das músicas é a valência, que identifica por algoritmos traços melódicos das canções para classificar as faixas como mais ou menos felizes.
Além dos lançamentos de novos discos, nacionais e internacionais, o Top 200 do Brasil viu a ascensão de músicas pouco ou muito antigas e continua refletindo o sucesso de hits lançados entre o fim do ano passado e o começo deste.
Isso porque a quantidade de vezes que os hits da lista de mais tocadas foram ouvidos diminuiu consideravelmente com o começo da quarentena, o que significa que os ouvintes procuraram menos por novidade, enquanto canções que já eram sucesso conseguiram se manter em alta -ainda que com menos plays que antes.
Essas são as músicas com maior valência do Top 200, como os hits dos Barões da Pisadinha (como "Chupadinha" e "Tá Rochedo"), que fazem um tipo sintético e moderno de forró, músicas que tocaram muito no Carnaval (os bregafunks "Tudo OK", "Hit Contagiante" e "Amor de Que", de Pabllo Vittar) e sucessos do funk rave (como "Rave Jogando o L", com DJ Piu e MC GW) e do sertanejo ( "Cem Mil", de Gusttavo Lima, e "Bebaça", de Marília Mendonça).
Quem mais perde com a impossibilidade de aglomerações é a música pop e o funk, em geral responsáveis pelas músicas de maior valência. Esses gêneros dependem não só de festas e shows, mas da audição coletiva, seja nos paredões e carros de som ou nos encontros para dançar.
Poucas novas músicas desses estilos conseguiram sucesso consistente na pandemia. No funk, entre as exceções estão "Vai, Luan, Rainha dos Faixa Preta", dos MCs Moana e Brunyn, e "Na Rapa Toma Tapão", sucesso improvável do MC Niack que foi do TikTok direto para o topo do Spotify. Ainda assim, funks melódicos fizeram sucesso, como "Tudo Aconteceu" e "50 Tons", ambas do MC Du Black.
No pop, Pabllo Vittar emplacou diversas faixas no Top 200, mas também puxou o humor para baixo com músicas mais dramáticas como "Salvaje" e "Ponte Perra". Duas faixas menos entusiasmadas de Alok também ascenderam, "Hear Me Tonight" e "Symphonia".
Uma música temática da quarentena, "Me Conta da Tua Janela", singelo pop de violão do Anavitória, foi bastante ouvida, assim como outras faixas da dupla. É o mesmo caso de "Você pra Sempre em Mim", a nova -e romântica- de Tiago Iorc.
Em sintonia com manifestações antirracistas pelo mundo, cresceram as audições de faixas de protesto ou exaltação da negritude, como "Alright", de Kendrick Lamar, "Say It Loud - I'm Black and I'm Proud", de James Brown, e "This Is America", de Childish Gambino.
O novo -e frio- disco de The Weeknd, "After Hours", lançado no meio da quarentena, emplacou diversas músicas tristes no Top 200, como "Alone Again", "Hardest to Love", "After Hours", "Scared to Live" e "Too Late", entre outras.
No rap brasileiro, Djonga emprestou à lista as mais emotivas de seu último álbum, "Todo Errado", "Não Sei Rezar" e "Procuro Alguém". O trapper carioca Orochi, que lançou seu primeiro disco, teve algumas das mais atmosféricas do Top 200, incluindo "Acelerando" e "Balão".
Billie Eilish, que já tinha suas faixas mais tristes entre as mais tocadas, manteve o apelo, e o americano Travis Scott emplacou traps viajados recentes e antigos. Esses sons mais lentos e reflexivos, inclusive, são alguns dos responsáveis pelo entristecimento dos hits no Brasil, seja com novas do mineiro Sidoka e do coletivo paulista Recayd Mob ou antigas do cearense Matuê.
Algumas faixas suaves e confortantes, presentes em playlists para trabalhar, estudar ou relaxar, tiveram destaque individualmente, como "Death Bed", de Powful, e "Ily", do Surf Mesa, uma versão acalmada ao violão da clássica "Can't Take My Eyes Off You".
Mas a mudança na "idade" das músicas talvez seja o principal fator que acompanha a queda acentuada e repentina da alegria no Top 200. Na quarentena, os brasileiros buscaram canções que já conhecem.
Nesse sentido estão baladas que foram sucesso recentemente e voltaram ao topo, como "Shallow", de Lady Gaga, e diversos hits nacionais.
A lista contém "Apenas Mais Uma de Amor", de Lulu Santos, "Pra Você Guardei o Amor", de Nando Reis, "Boate Azul", na voz de Bruno & Marrone, "Até que Durou", de Péricles, "Quando Você Passa", de Sandy & Junior, "Every Breath You Take", do The Police, e "Tempo Perdido", do Legião Urbana.
Além da natural busca por conforto em tempos incertos, a maior procura por músicas antigas também tem a ver com o sucesso das lives no Brasil. O formato, que rendeu verdadeiros fenômenos de audiência, em especial no sertanejo, levou os fãs a correr atrás das obras dos artistas que viram nas transmissões.
Até por isso, o sertanejo -sempre dominante entre as mais tocadas- sofreu pouca variação em relação ao que já era ouvido. Jorge & Mateus, Gusttavo Lima, Marília Mendonça, Henrique & Juliano, Matheus & Kauan e Wesley Safadão são provavelmente os artistas do gênero mais ouvidos do Brasil no último ano -e se mantiveram com sucesso.
A virada de pop para pagode de Ludmilla, que emplacou todas as faixas de seu EP recente no Top 200, talvez seja a mais emblemática do período. Sai a trilha para dançar, entra a desilusão romântica.
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