A divulgação de gravações de uma ex-cunhada de Jair Bolsonaro (sem partido) apresentou novos indícios de uma atuação do presidente no suposto esquema da "rachadinha", inicialmente identificado no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Os áudios, divulgados pelo UOL, indicam que o recolhimento de parte do salário de funcionários também ocorria no antigo gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, com a participação ativa do hoje presidente da República.
Flávio foi denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro pela prática, sob acusação de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Informações anteriores já mostravam que Bolsonaro teve, quando deputado federal, transações e práticas semelhantes às que levantaram suspeitas contra o seu filho mais velho. Os áudios, contudo, sugerem uma atuação concreta do presidente no suposto esquema.
O que muda com a divulgação dos áudios da ex-cunhada do presidente?
A gravação divulgada pelo UOL mostra a fisiculturista Andrea Siqueira Valle afirmando que Bolsonaro demitiu André Siqueira Valle, seu irmão, porque ele não devolvia o valor combinado.
"O André deu muito problema porque ele nunca devolveu o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver R$ 6.000, ele devolvia R$ 2.000, R$ 3.000. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: 'Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo'."
André foi demitido em outubro de 2007 do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara, onde havia sido empregado em novembro de 2006. Antes ele esteve lotado no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
A prática de entrega de parte do salário para o titular do gabinete é justamente a chamada "rachadinha", identificada inicialmente no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
O áudio é o primeiro indício a indicar uma participação ativa do presidente no esquema. Insatisfeito com a retenção de uma parte maior do que a esperada pelo funcionário, Bolsonaro o demitiu, segundo a gravação da ex-cunhada.
Andrea é irmã de Ana Cristina Siqueira Valle, mulher de Bolsonaro de 1998 a 2007. Ela teve 17 parentes empregados nos gabinetes de Jair, Flávio e Carlos ao longo dos anos.
Dez deles tiveram o sigilo bancário quebrado na investigação sobre o gabinete de Flávio. Os dados mostram que eles sacavam, em média, 84% do salário que recebiam. A suspeita é que a entrega de dinheiro para a família Bolsonaro se dava com dinheiro vivo, a fim de dificultar o rastreamento.
O que se sabia sobre o envolvimento do presidente no caso?
Dados da investigação contra Flávio revelaram informações sobre Jair Bolsonaro e alguns de seus ex-assessores, indicando práticas do presidente semelhantes às consideradas suspeitas pelo Ministério Público contra o senador.
A denúncia contra Flávio afirma que os recursos da "rachadinha" circularam prioritariamente por meio de dinheiro vivo. Segundo a acusação, um meio de lavagem de dinheiro foi a aquisição de imóveis.
O presidente se envolveu diretamente com dinheiro vivo numa das transações imobiliárias de seu filho 01, como Flávio é chamado. A declaração para Imposto de Renda do senador informa que, em 2008, Jair Bolsonaro lhe emprestou R$ 55 mil em espécie.
Esse empréstimo, bem como os realizados da mesma forma por Carlos Bolsonaro e ex-assessores do presidente, deram lastro financeiro para a compra de 12 salas comerciais por Flávio em 2008. Foram no total R$ 230 mil de empréstimos com recursos em espécie.
O uso de dinheiro vivo pelo presidente também foi declarado em suas campanhas eleitorais. Bolsonaro também doou R$ 10 mil em espécie para Carlos no ano passado, quando a prática já era considerada irregular.
O vereador devolveu o dinheiro, o que é permitido pela legislação, e o pai refez a contribuição por uma transferência bancária.
Reportagens do jornal O Globo também afirmaram que algumas transações imobiliárias do presidente e suas ex-mulheres Rogéria Bolsonaro e Ana Cristina Siqueira Valle foram realizadas em dinheiro vivo.
As escrituras das operações registram que o pagamento foi feito "em moeda corrente", expressão habitualmente usada para descrever uso de recursos em espécie.
Ana Cristina também declarou em 2007 à polícia que mantinha, quando casada com Bolsonaro, R$ 200 mil e US$ 30 mil em espécie num cofre no Banco do Brasil. O depoimento foi dado quando ela registrou queixa do suposto roubo dos valores ali mantidos.
Carlos Bolsonaro também alugava um cofre no Banco do Brasil, indicam extratos bancários do vereador.
Transações em espécie não configuram crime, mas podem ter como objetivo dificultar o rastreamento da origem de valores obtidos ilegalmente. É o caso da "rachadinha" descrita pelo MP-RJ.
A família Bolsonaro não tinha, até 2015, nenhuma atividade que pudesse servir de fonte de renda em dinheiro vivo -naquele ano, Flávio adquiriu uma loja de chocolates. A prática também contraria declaração do próprio presidente à Folha em janeiro de 2018, quando negou manter dinheiro vivo em casa.
"Eu não guardo dinheiro no colchão em casa. Tem muita gente que declara. Até a Dilma [Rousseff, ex-presidente] declarou uns cento e poucos mil. Eu nunca declarei isso daí", disse ele na ocasião.
A análise dos documentos relativos aos 28 anos em que Jair Bolsonaro foi deputado federal, de 1991 a 2018, mostra uma intensa e incomum rotatividade salarial de seus assessores, atingindo cerca de um terço das mais de cem pessoas que passaram por seu gabinete nesse período.
O modelo de gestão incluiu ainda exonerações de auxiliares que eram recontratados no mesmo dia, prática que acabou proibida pela Câmara dos Deputados sob o argumento de ser lesiva aos cofres públicos.
A Folha de S.Paulo se debruçou sobre os boletins administrativos da Casa, identificando uma ação contínua. De um dia para o outro, assessores chegavam a ter os salários dobrados, triplicados, quadruplicados, o que não impedia que pouco tempo depois tivessem as remunerações reduzidas a menos de metade.
Mesmo assim, dois deles disseram à reportagem nem mesmo se lembrar dessas variações formalizadas pelo gabinete de Jair Bolsonaro.
Nove assessores de Flávio Bolsonaro que tiveram o sigilo quebrado pela Justiça na investigação sobre "rachadinha" (desvio de dinheiro público por meio da apropriação de parte do salários de funcionários) na Assembleia Legislativa do Rio foram lotados, antes, no gabinete do pai na Câmara dos Deputados.
Bolsonaro também realizou transação imobiliária com características suspeitas de acordo com critérios do Coaf (órgão de inteligência financeira), assim como Flávio.
Em 2009, o presidente adquiriu sua casa na Barra da Tijuca por R$ 400 mil. Quatro meses antes, a antiga proprietária havia comprado o imóvel por R$ 580 mil. Bolsonaro teve um desconto de 30% em comparação ao valor pago antes.
A transação foi revelada pela Folha em janeiro de 2018.
Desvalorização semelhante foi constatada na aquisição por Flávio de dois imóveis em Copacabana. Ele declarou em escritura ter pago R$ 310 mil pelos apartamentos, quando ambos custaram aos antigos proprietários, um ano antes, R$ 440 mil somados.
O senador é acusado de ter pago "por fora" R$ 638,4 mil em dinheiro vivo pela compra desses imóveis. O MP-RJ identificou, após a quebra de sigilo bancário, que a conta da pessoa responsável pela venda dos dois imóveis a Flávio teve depósito deste valor em espécie no mesmo dia da transação.
Flávio revendeu os apartamentos pouco mais de um ano depois por R$ 1,1 milhão, obtendo um lucro de R$ 813 mil na "transação relâmpago". O MP-RJ afirma que a operação permitiu que o dinheiro ilegal da "rachadinha" passasse a integrar o patrimônio oficial do senador, a partir de revenda dos apartamentos e a declaração à Receita Federal.
Para investigadores, a desvalorização repentina pode indicar possível pagamento não declarado, a fim de ocultar o patrimônio do comprador de origem ilegal. O presidente, cuja casa permanece em seu nome, já negou ter adotado tal prática.
A relação financeira comprovada com Fabrício Queiroz, apontado como operador financeiro da "rachadinha", também é mais intensa com a família do presidente do que com a de Flávio, segundo os dados bancários da investigação.
A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, recebeu o depósito de 27 cheques entre 2011 e 2016 que somam R$ 89 mil, de acordo com a quebra de sigilo bancário de Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar.
Já a conta da mulher do senador, a dentista Fernanda Bolsonaro, registra o depósito de R$ 25 mil em espécie uma única vez. O aporte antecedeu o pagamento da entrada de um imóvel.
O MP-RJ identificou que Queiroz pagou em dinheiro ao menos uma vez a mensalidade escolar das filhas do senador, que custavam, somadas, R$ 6.942,55. Há outros 114 boletos de mensalidade escolar e plano de saúde da família de Flávio quitados com dinheiro vivo cuja origem não é identificada.
As quebras de sigilo não identificaram prática semelhante com o presidente. Mas ele mesmo declarou em entrevista que Queiroz também pagava algumas de suas contas.
"O Queiroz pagava conta minha também. Ele era de confiança", disse o presidente, em entrevista à TV Bandeirantes em dezembro de 2020.
A quebra de sigilo bancário de Nathália Queiroz, filha de Fabrício Queiroz, mostrou que o repasse de 80% de seu salário para o pai permaneceu quando ela deixou o gabinete de Flávio na Assembleia para ser funcionária no de Bolsonaro, na Câmara dos Deputados.
Nathália transferiu R$ 150.539,41 para a conta do policial militar aposentado de janeiro de 2017 a setembro de 2018, período em que esteve lotada no gabinete de Bolsonaro. O valor representa 77% do que a personal trainer recebeu da Câmara.
Queiroz foi empregado no gabinete de Flávio por indicação de Bolsonaro. Os dois se conheceram em 1984, na Brigada Paraquedista do Exército.
"Conheço o senhor Queiroz desde 1984. Depois nos reencontramos, eu como deputado federal e ele, sargento da Polícia Militar. Somos paraquedistas. Continuou uma amizade. Em muitos momentos estivemos juntos em festas, eventos, até porque me interessava ter uma segurança policial ao meu lado. Com o tempo foi trabalhar com o meu filho", disse o presidente, em dezembro de 2018, sobre o relacionamento com Queiroz.
O que diz o presidente sobre o áudio e as informações da investigação?
O Palácio do Planalto disse que não teve acesso à íntegra das gravações divulgadas pelo UOL, apenas a "trechos fora de contexto, sem mais informações sobre data e hora" e que, por isso, não teria como se manifestar.
Em nota, o governo afirmou que "a construção da narrativa, tal qual feita pelo UOL, por meio da divulgação de trechos sem contextualização cronológica parecem ter como intuito induzir o leitor/espectador a conclusões precipitadas por carecer de contexto".
Os advogados do senador Flávio Bolsonaro também divulgaram nota e afirmaram que as gravações são "clandestinas" e "feitas sem autorização da Justiça".
Segundo a defesa, quando foi deputado estadual, Flávio "não recebeu informação ou denúncia de que havia qualquer irregularidade no seu gabinete ou em relação ao pagamento dos colaboradores" e que "não passa de insinuação e fantasia a ideia de que o parlamentar participou de qualquer atividade irregular".
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