Declarações do ministro da Educação, Milton Ribeiro, sobre orientação sexual, o papel de seu ministério e a carreira de professor em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo foram criticadas por especialistas, para os quais o ministro mostra desconhecimento de suas atribuições e uma "visão equivocada e preconceituosa", que contraria a lei.
Na entrevista, publicada nesta quinta (24), Ribeiro, que é pastor presbiteriano, diz que a homossexualidade não é normal e a atribui a "famílias desajustadas".
Ele declara ainda que "hoje ser professor é ter quase uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa" e exime o Ministério da Educação (MEC) de colaborar com o redes de ensino no enfrentamento dos reflexos da pandemia de coronavírus.
"Não se trata de uma questão de valores familiares, mas de um direito à educação de qualidade, ao conhecimento científico, previsto na legislação educacional, reafirmado por decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que destacam o dever do Estado de abordar gênero e sexualidade nas escolas", afirma a educadora Denise Carreira, da Ação Educativa.
As declarações sobre homossexualidade vieram em resposta a uma pergunta sobre evitar o bullying. "O adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo (sic) tem um contexto familiar muito próximo. São famílias desajustadas, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe. Vejo menino de 12, 13 anos optando por ser gay, nunca esteve com uma mulher de fato, com um homem de fato, e caminhar por aí", diz o ministro.
A relação entre contexto familiar orientação sexual não se ampara em nenhuma linha de pesquisa. Também são incorretos os termos "opção sexual", já que a orientação sexual não pode ser escolhida, e "homossexualismo" - o sufixo "ismo" refere-se a doença, e a Organização Mundial da Saúde retirou há 30 anos a palavra da Classificação de Doenças.
O Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual (GaDvs) afirmou à reportagem que entrará com queixa criminal por racismo homotransfóbico e ação civil por dano moral coletivo. "Não se pode usar a estrutura do Estado para ofender pessoas, disseminar mentiras e ignorar a obrigação constitucional de combater todas as formas de discriminação", diz Paulo Iotti, diretor-presidente.
A homofobia é um problema expressivo na escola. Pesquisa de 2016 mostrou que 73% dos jovens de 13 a 21 anos identificados como LGBT foram agredidos verbalmente na escola em 2015 por causa de sua orientação sexual. É o maior índice entre seis países da América Latina onde a pesquisa foi feita.
Ribeiro declara também que quer revisar os conteúdos ensinados nas escolas para que não haja "incentivo a discussões de gênero". Desde a campanha de 2018, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) tem ecoado a agenda de grupos conversadores e religiosos que busca vetar essas discussões na escola.
Agora, o debate volta à tona com a gravidez de uma menina de 10 anos em decorrência de estupro no Espírito Santo e a ação da ministra Damares Alves (Mulheres, Família e Direitos Humanos), revelada pelo jornal Folha de S.Paulo, para tentar evitar o aborto legal na criança.
Carreira diz que o caso capixaba exemplifica a "urgência da sociedade brasileira dizer não à ignorância e à desinformação promovida por grupos ultraconservadores", e lembra que a educação para igualdade de gênero é prevista tanto na lei quanto em documentos curriculares.
O perfil religioso foi preponderante para a nomeação de Ribeiro, que assumiu o cargo em julho e escolheu como assessora uma religiosa defensora da adoção de princípios bíblicos no ensino.
Gestores educacionais têm apontado omissão do MEC na coordenação de ações durante e após a pandemia. A pasta não criou uma linha de financiamento específica, e os recursos que o ministro cita na entrevista como enviados às escolas já eram previstos, sem relação com a Covid - o MEC defendeu, em nota, que recursos vieram de remanejamentos internos.
"Há um diálogo institucional com o ministério, e essa ação conjunta é extremamente importante", afirma Luiz Miguel, presidente da Undime, entidade dos secretários municipais de educação, para quem as declarações ignoram "o regime de colaboração federativo previsto pela Constituição".
Na entrevista, o ministro diz que sua pasta não pode interferir na condução das políticas educacionais. "É estado e município que têm de cuidar disso aí. Nós não temos recurso para atender", afirma.
Segundo o o especialista em políticas educacionais pelo IFRS Gregório Grisa, Ribeiro contraria a Constituição, que prevê como responsabilidade da União a "função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira" aos Estados e municípios.
"O ministro está equivocado sobre as responsabilidades do ministério. Ele fez quase um anúncio de improbidade administrativa ao se eximir de seu papel", diz.
Ribeiro afirma também que que vai revisar materiais didáticos para contemplar outra abordagem sobre a ditadura militar (1964-1985), emulando o discurso de Bolsonaro, que elogia torturadores: "O fato do movimento militar, na época, ter impedido que o Brasil se tornasse uma Cuba eu acho perfeito".
Por fim, ele defende maior o foco do MEC nos professores. "Hoje ser professor é ter quase que uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa. Está na hora de parar de ter como protagonista somente o aluno, a infraestrutura, a comida, o assistencialismo."
A reportagem questionou o MEC sobre planos para os docentes e mudanças curriculares, mas não obteve resposta. Também indagou o ministério sobre as fontes das declarações do ministro sobre homossexualidade, igualmente sem resposta.
Em nota, encaminhada na noite de quinta-feira à reportagem, o MEC afirma que reconhece que a valorização dos profissionais da educação básica é fundamental para a melhoria da qualidade da educação. "Isso requer ações específicas que devem focar na formação inicial e continuada dos professores", diz a nota, sem detalhar os planos para o tema.
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