Construída do zero em 2009, a famosa Aldeia Temática, chamada Tekoá Mirim – localizada perto do rio Piraquê-Açu, em Aracruz – único município do Espírito Santo que ainda abriga aldeias indígenas, foi erguida tendo um curioso propósito inicial. O local foi cenário do filme "Como a Noite Apareceu", inédito no Brasil e no mundo por ser a primeira obra em que a grande maioria do elenco é formada por indígenas, além de ter sido gravado na língua tupi-guarani.
A obra cinematográfica – idealizada pela produtora Regina Mainardi e dirigida por Alexandre Perin – teve apoio cultural da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Fibria (atual Suzano Aracruz), com patrocínio da Petrobras e do Ministério da Cultura. A responsável pela realização foi a Politeama Produções Culturais – produtora capixaba que não existe mais e que atuou em diversas áreas das artes, como audiovisual, literatura, teatro, rádio e eventos temáticos.
"Como a Noite Apareceu?" fala de lenda tupi-guarani
Hoje sabemos que a noite surge devido ao movimento rotativo do planeta Terra, mas, por muito tempo, diversos povos não tinham acesso a esse conhecimento, criando diversos mitos para explicar a existência das coisas no mundo. Com os povos originários do Brasil não foi diferente, onde surgiu então a lenda tupi-guarani sobre o surgimento da noite – tema contado na produção capixaba.
O projeto, que demorou cerca de um ano para ser finalizado, foi titulado "Como a noite apareceu?`" e trata do surgimento da noite no mitologia Guarani, com elenco formado quase que completamente por indígenas: 85 atores Guarani Mbya e duas atrizes não indígenas. Foi o primeiro filme brasileiro protagonizado por indígenas e falado na língua Tupi-Guarani, sendo legendado para o português, inglês, espanhol, francês, chinês e alemão.
![Cartaz do filme ´´Como a noite apareceu``](https://midias.agazeta.com.br/2023/03/24/cartaz-do-filme-como-a-noite-apareceu-1443268.jpeg)
O média-metragem tem início com a história de Abarayra (Alberto Alvares) e a suas tentativas para consumar seu casamento com Ynhauri (Drika Torres), a jovem que se recusava a se relacionar com o jovem guerreiro. Ynahuri dizia que só iria se deitar com seu marido quando anoitecesse, mas Abarayra não conhecia a escuridão da noite, na aldeia só existia a claridade do dia, pois a lua não chegava ao céu.
Em certo momento, sua companheira contou que a noite estava guardada em um caroço de tucumã, que estava sendo protegido por seu pai, o Cobra Grande, no fundo do rio. Com essa informação, o guerreiro se reúne com seus amigos, Tig-Tig e Teyuguassú, embarcando em uma missão à procura do caroço. Após encontrarem o caroço de coco de tucumã, o Cobra Grande avisou que os três guerreiros poderiam levar o artefato para sua filha, mas ordenou que não abrissem o caroço.
![Abarayra, interpretado por Alberto Alvares, em uma cena do filme ´´Como a noite apareceu``](https://midias.agazeta.com.br/2023/03/24/-abarayra-interpretado-por-alberto-alvares-em-uma-cena-do-filme-como-a-noite-apareceu-1443277-article.jpeg)
No caminho de volta para a aldeia, Tig-Tig e Teyuguassú, movidos pela curiosidade, decidiram destampar o caroço da fruta, então libertando a noite. Ynhauri vendo a confusão que os dois amigos causaram, decidiu que iria separar o dia da noite com um fio encantando.A partir desse dia, a noite passou a ser anunciada pelo pássaro Cujubi, e a noite é anunciada pelo canto do Urutau.
Mudança de vida
Em entrevista à reportagem de A Gazeta, o cineasta e professor indígena da etnia Guarani Nhandewa, Alberto Alvares, de 40 anos, nascido no Mato Grosso do Sul, conta que vivia e trabalhava como professor na aldeia Piraquê-Açu quando o projeto de "Como a Noite Apareceu" surgiu, sendo o seu primeiro contato com o cinema. Ele diz que nunca havia pensado em trabalhar com a sétima arte, mas uns dos seus alunos sugeriu que fizesse o processo seletivo para atuar como o personagem principal, o que impulsionou ele a tentar.
Após a estreia do filme, Alberto se mudou para o Rio de Janeiro e passou a se dedicar à profissionalização no audiovisual, e com a arte o cineasta luta contra a imagem do indígena "engessado", mostrando a sua e a visão do povo indígena em curtas e longas-metragens, além de documentários.
Alberto Alvares
Cineasta, diretor, ator e professor
"O universo fílmico dos festivais nos possibilita mostrar ao público as especificidades e singularidades de nosso modo de filmar, dialogando com novas produções e descobrindo novos talentos. Assim como um corpo que não se movimenta, enfraquece, um filme que não circula, perde sua força"
Do Espírito Santo para o mundo
"Como a noite apareceu" não se limitou às terras capixabas, o filme sobre a mitologia Guarani marcou presença em festivais internacionais, levando o cinema capixaba, junto a cultura e língua Tupi-Guarani, a ser transmitido na África, Ásia, Europa e, é claro, na América Latina. Alguns dos eventos foram:
- 15° Shanghai International Film Festival - Focus Brazil, na China
- Abertura do Festival Internacional de Cinema Social durante o Fórum Social Mundial em Dakar, no Senegal
- Short Film Corner em Cannes, na França
- Festival Provincial de Cine Joven, na Argentina
- 8ª Mostra Independente - Janelas, no Espírito Santo
De volta ao mundo do cinema
O incrível cenário da Aldeia Tekoá Mirim não deixou de ser utilizado após a estreia da média-metragem. O ator Chay Suede, nascido no Espírito Santo e muito conhecido por ser um dos galãs da Globo, fez sua estreia como diretor de cinema utilizando a Aldeia Temática como set de filmagens.
O roteiro de "O Eremita", com o ator Ed Oliveira protagonizando o longa, foi escrito e produzido por Robertchay Domingues, pai de Chay Suede, e conta a história de um homem que decidiu viver isolado em uma floresta. O filme foi filmado à beira do rio Piraquê-açu e utiliza o belo cenário da mata atlântica que rodeia a Aldeia Temática.
![Chay Suede e Ed Oliveira nas gravações do filme ´´O Eremita``](https://midias.agazeta.com.br/2023/03/24/chay-suede-e-ed-oliveira-nas-gravacoes-do-filme-o-eremita-1443263-article.jpeg)
Curiosidades sobre a Aldeia Tekoá Mirim
Após a estreia de "Como a noite apareceu?`", a Aldeia Tekoá Mirim adquiriu outro propósito, ser um dos principais locais onde se pratica o Etnoturismo no Espírito Santo — e a primeira do estado que realiza esse tipo de atividade. Para o Cacique Peru, a aldeia é mais do que uma fonte de renda para seu povo, sendo um local para o fortalecimento e preservação da cultura dos povos originários.
Em um ambiente com ocas circulares feitas de palha e um terreiro ao centro, representando como seria uma aldeia pré-colonial, o local virou um ponto para passeios, inclusive pedagógicos devido ao chamado “Plano de Visitação da Aldeia Temática Tekoá Mirim”.
![Aldeia Temática em Aracruz, no Espírito Santo](https://midias.agazeta.com.br/2023/03/24/aldeia-tematica-em-aracruz-no-espirito-santo-1443292-article.jpg)
Os visitantes que decidirem realizar essa experiência imersiva poderão provar da comida típica, realizar uma trilha no meio da Mata Atlântica, onde também conheceram árvores centenárias e a importância delas para a comunidade, se encantar com o artesanato e a pintura corporal indígena, participar e conhecer o coral Guarani, fazer um passeio de barco pelo rio Piraquê-Açu e saber sobre a história da aldeia e do povo Guarani em uma roda de conversa, além de entender a relação do homem com a natureza.
Para realizar as atividades citadas na aldeia, é necessário realizar uma reserva antecipadamente, como divulgado pela própria comunidade em suas redes sociais, e informar o que deseja conhecer. O agendamento pode ser realizado com o Cacique Peru, no número: (27) 99606-2754 e pelo Instagram @aldeiatematikaturismo. O valor unitário por pessoa é de R$ 25.
Localização da Aldeia Tekoá Mirim
- Aracruz - ES, 29199-010
- Próximo à rodovia ES 010, ao lado do rio Piraquê-Açu
Indígenas Guarani no Espírito Santo
Os índios Guarani atualmente habitam diversos países da América Latina, como Paraguai, Argentina, Uruguai, entre outros. No Brasil, o povo guarani é subdividido em três subgrupos, sendo: Mbya, Nhandewa e Kaiowa. O Espírito Santo é habitado pelos Guaranis Mbya, que vivem nas aldeias de Boa Esperança, Três Palmeiras e Piraquê-Açu no litoral norte do estado, em Aracruz.
![Aldeia Temática em Aracruz, no Espírito Santo](https://midias.agazeta.com.br/2023/03/24/aldeia-tematica-em-aracruz-no-espirito-santo-1443291-article.jpg)
A historiadora e professora Kalna Teao, explica que os Guarani Mbya saíram do Rio Grande do Sul, por serem um povo que está em constante migração, e chegaram no estado em 1967, juntamente com a chegada da antiga Aracruz Celulose, o que levou a união dos Guaranis e os Tupinikim, povo que historicamente já habitava o litoral capixaba e hoje vivem nas aldeias de Caieiras Velhas, Irajá, Comboios e Pau Brasil, em uma disputa política com a empresa e o estado e a homologação dos Myba as terras Tupinikim, em 1983.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.