Seja para começar o dia com energia, dar um gás após o almoço ou ajudar a se manter focado durante uma reunião: o cafezinho é sempre bem-vindo. Mas, desta vez, não vamos falar de uma bebida comum – muito pelo contrário. Que tal uma xícara de café feito a partir das fezes de uma ave? Parece loucura, mas é isso mesmo que você leu.
Chamado de "Café do Jacu", ele é produzido com grãos que passaram por todo o processo digestivo de uma ave típica da Mata Atlântica, a Penelope obscura, popularmente conhecida como Jacuaçu. A elaboração da bebida exótica ocorre exclusivamente em uma fazenda localizada em Domingos Martins, na Região Serrana do Espírito Santo.
Embora o modo curioso de produção já renda uma ótima história por si só, a origem revela uma verdadeira reviravolta: o café – cujo quilo, no início de 2022, era vendido pela fabricante por quase R$ 1 mil no Brasil – surgiu sem qualquer pretensão comercial e serviu de solução para os ataques que ameaçavam parte da lavoura.
ANTES DA IDEIA INUSITADA
Se a bebida depende da digestão do grão pelo pássaro, é evidente que tudo começa com um pedaço de terra destinado à plantação de pés de café. A Fazenda Camocim surgiu em 1962, ao ser comprada pelo empresário Olivar Fontenelle de Araújo – um dos fundadores da antiga Aracruz Celulose.
O terreno fica às margens da Rota do Carmo, uma estradinha de terra no distrito de Pedra Azul, na altura do quilômetro 90 da BR 262. O nome da propriedade é uma homenagem ao município homônimo do Ceará, onde o dono nasceu. Inicialmente, o objetivo era desenvolver um projeto de agrofloresta – sistema que reúne as culturas de importância agronômica em consórcio com a plantas que integram a floresta.
"Meu avô era colecionador de árvores. Durante décadas, ele plantou centenas de exemplares. A ideia era fazer produtos de madeira, mas isso acabou falhando. O café chegou depois, em 1999, como mais um tipo de árvore, mas já com a ideia de obter fonte de renda", conta o neto Henrique Sloper.
Segundo ele, a meta inicial era plantar 1 milhão de mudas. "A ideia de tudo ser orgânico foi por causa da visão do meu avô, que não queria agrotóxicos. Nós chegamos à metade desse número, respeitando a natureza. Em 2021, plantamos 40 mil plantas e continuamos expandido", comenta.
O PATRÃO ENLOUQUECEU
À frente do empreendimento, Henrique explica que os pés de café começaram a produzir grãos antes de as árvores de grande porte concluírem o respectivo processo de crescimento. Apenas quando a agrofloresta se formou é que começaram a ocorrer os ataques da ave apelidada de "Jacu".
A primeira invasão significativa aconteceu em 2008. "Eu estava na fazenda e já tinha provado o café Kopi Lwak, por curiosidade, quando mais novo. Por isso, tive a ideia de tentar produzir a bebida com as fezes. Foi algo totalmente inesperado e não tínhamos a ideia de transformar em um produto", garante.
Diferentemente do café asiático, o produzido nas montanhas capixabas se materializa por meio do ciclo da natureza, com o mínimo de intervenção humana possível. As aves vivem livremente e voam a região como bem entendem. Isso significa que as fezes acabam sendo espalhadas por aí.
Henrique Sloper
Proprietário da Fazenda Camocim
"Eu tive que dar prêmio no final do ano para quem colhesse mais. É assim até hoje. Imagina falar para eles recolherem cocô... Eles acharam que o patrão tinha enlouquecido"
De acordo com o empresário, a ausência de cativeiros e de maus-tratos aos animais precisou ser atestada por um relatório para que fosse possível concretizar uma venda em 2015. Na ocasião, especialistas também teriam observado 72 espécies de aves e dez mamíferos vivendo na fazenda ou no entorno dela.
Devido à falta de estudos populacionais sobre o Jacuaçu, até por não estar em extinção e as pesquisas focarem em espécies ameaçadas, a quantidade de exemplares em Domingos Martins é desconhecida. No entanto, Henrique acredita que existam, pelo menos, 150 aves na região da propriedade.
DO PÉ-DE-MOLEQUE À XÍCARA
Depois de o Jacu comer os grãos de café direto do pé e das fezes serem encontradas pelos hectares da fazenda, foram necessários inúmeros testes e erros para chegar a um processo que resultasse em uma bebida saborosa. Após dois anos iniciais, a produção ganhou volume em 2010, com mais de 150 kg.
Antes de ser submetido a qualquer etapa da elaboração, as fezes parecem um pé-de-moleque: as sementes do café ficam presas umas às outras por meio dos demais componentes do cocô. Muitas vezes, também grudam pequenos galhos e folhas. A partir daí, é dado início a alguns passos principais:
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"Colheita" e secagem
Depois de recolhidas no terreno, as fezes contendo os grãos de café passam por um processo de secagem dentro de uma estufa, onde a temperatura é sempre mais elevada que a do ambiente.
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Seleção e higienização
Os grãos, ainda misturados às fezes, são, então, selecionados pelos trabalhadores da fazenda. Em seguida, passam por um processo de higienização – essencial, neste caso, visto que a bebida é feita a partir dos dejetos de um animal.
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Torrefação
Depois de um período armazenado, o café passa por um processo chamado "torrefação", que consiste em torrar o grão. Dependendo do cliente, esta pode ser a última fase antes da embalagem.
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Moagem
Outra possibilidade, a depender da destinação do café, é o grão ser moído. Quando em pó, ele é embalado em pacotes, como os que podem ser adquiridos em cafeterias e lojas especializadas.
"O processo é basicamente feito à mão. Recentemente, foi adotada a etapa de congelamento para ajudar na qualidade e evitar proliferações de bactérias, propícias nesse tipo de material. Além da peculiaridade que carrega, ele acaba sendo caro pelo custo da produção em si", explica Henrique.
Café do Jacu: o início do processo da bebida exótica
Diferentemente de outros tipos de café, o do Jacu não precisa passar pela etapa da fermentação – porque ela já ocorreu dentro do sistema digestivo da ave – nem pela lavagem comum. Neste caso, ao ter contato com a água, a semente acabava se oxidando e o sabor final da bebida ficava bastante comprometido.
Apesar da curiosidade da reportagem de A Gazeta, outros detalhes sobre o particular processo de produção da bebida são mantidos em segredo pelo empresário, que também não revela qual a produção anual do "Café do Jacu" nem a participação dele na receita total da fazenda.
AVE BARISTA?
Antes do cuidado humano, há uma seleção rigorosa por parte do Jacu, que praticamente só come grãos maduros de café. Porém, mais do que uma preferência pelo sabor, um estudo feito em 2002 sugere que a ave é atraída pela cor do fruto, que fica vermelha nesse estágio de maturação.
"Os pesquisadores contabilizaram que ela se alimenta de aproximadamente 50 frutas. Dessas, quase 43% eram vermelhas. Esta é, provavelmente, a cor que mais chama atenção do Jacu", explica o biólogo Brener Fabres da Silva, do mestrado de Biologia Animal da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Jacuaçu
Nome vem da língua tupi e significa "ave que se alimenta de grãos"
O especialista também esclarece que, ao ser ingerido pela ave, o grão de café passa pela moela e é destroçado. No entanto, como ele é muito grosso, apenas a polpa é retirada e a semente passa direto até a defecação. "Por isso, as espécies dessa família são algumas das principais dispersoras de árvores", conta.
Outra fator que favorece a produção é que a colheita do café acontece durante o inverno: em junho, julho e agosto – meses em que a oferta de frutas, no geral, é mais escassa. Ou seja, essa combinação contribui para que o grão seja consumido pelo Jacu, apesar de o animal ser bem arisco ao contato humano.
Comum no Sul e Sudeste brasileiros, o Jacuaçu (Penelope obscura) possui penas em um tom de verde bronzeado bem escuro, que se aproxima do marrom. De todo o gênero, ela é a segunda maior ave, chegando a medir 75 centímetros de altura. Já o peso da espécie oscila entre 1 kg e 1,2 kg.
O biólogo Brener Fabres da Silva também revela que o termo "Jacu" usado pelo café exótico é, na verdade, só uma abreviação. Popularmente no ramo da biologia, por exemplo, ela faz referência a um grupo de aves cujos nomes se iniciam dessa forma, como Jacupemba, Jacutinga e Jacu-estalo.
CAFÉ FEITO. QUEM TOMA?
Passado todo o desafio de colher as fezes e de encontrar um jeito de transformá-las em café, era preciso achar quem tivesse coragem de provar a bebida – sem esconder a origem, claro. O "criador" Henrique Sloper afirma que a venda começou no exterior e teve um efeito "boomerang".
Henrique Sloper
Proprietário da Fazenda Camocim
"Na hora que começou a sair na mídia internacional, a turma no Brasil acordou: 'Como assim tem um cara vendendo cocô de passarinho em Paris?'"
Segundo ele, a estratégia foi buscar quem já vendia o Kopi Lwak. Atualmente, o café do Jacu tem como principal mercado a Europa, incluindo países como França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, e a Ásia, especialmente pelo Japão. De acordo com o empresário, o quilo chega a ser vendido por R$ 12 mil.
A qualidade do café é garantida pelos certificados da BSCA. Já os emitidos pelo IBD servem para atestar que os processos são orgânicos (sem agrotóxicos, transgênicos ou fertilizantes químicos) e biodinâmicos (que usam preparados específicos e seguem o calendário astronômico, por exemplo).
Na cafeteria da própria Fazenda Camocim, é possível provar o "Jacu Bird" em uma xícara de café expresso ou coado. Ainda assim, no início de 2022, a bebida não saía por menos de R$ 24. O especialista Sílvio Leite, da Associação Brasileira de Cafés Especiais afirma que a linha é "chocolatada, muito densa e gostosa".
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