1979: moradores de barco na praça municipal de Colatina
1979: moradores de barco na praça municipal de Colatina. Crédito: Afrânio Serapião de Souza

Como enchente em Colatina criou a maior rota de tráfico de drogas do Sudeste

Inundações em 1979 na cidade capixaba levaram milhares de pessoas para Rondônia, onde havia distribuição de terras. Proximidade com a Bolívia facilitou surgimento da rota de tráfico

Tempo de leitura: 7min
Vitória
Publicado em 14/01/2023 às 08h33

A manifestação mais famosa da Teoria do Caos, que ajuda a compreender a formação do Universo, é o efeito borboleta. Resumidamente, ela atesta que uma ação inicial, ainda que pequena ou despretensiosa, pode ocasionar fenômenos de grande magnitude.

A partir desse modelo de percepção, podemos imaginar como uma enchente em Colatina, em 1979, que deixou 74 mortos e mais de 100 mil desabrigados, foi o estopim para o surgimento da "Conexão Sudeste", rota que movimentava mensalmente mais de uma tonelada de cocaína, abastecendo o mercado chefiado por Fernandinho Beira-Mar, ex-líder do Comando Vermelho e um dos traficantes mais conhecidos do país.

Até hoje relembrada pelos colatinenses que testemunharam o aguaceiro, a enchente de 1979 foi o resultado de mais de um mês de chuvas fortes na cabeceira do Rio Doce. Em uma época em que a comunicação ainda não tinha um alcance tão grande quanto hoje, milhares de pessoas foram atingidas por não conseguirem pedir ajuda ou mesmo serem avisadas da alta do nível do rio.

Zilton Lopes

Artesão que tinha 29 anos na época da enchente

"Foi uma noite de horror. Naquela época não tinha telefone direito, não tínhamos como receber ou dar notícias. Além disso, ficamos com medo da água levar a ponte porque aí não teria passagem e a destruição seria ainda maior"

Além da chuva, a época era de baixa no mercado do café, principal atividade econômica na região. Se antes do dilúvio o cenário já era de crise para muitos moradores do Noroeste, depois da enchente, com muitos perdendo o pouco que tinham, a situação ficou ainda pior.  Foi então que um programa de habitação da Amazônia, do então governo militar, surgiu como principal esperança para reconstrução.

Desde o final dos anos 1960, os militares defendiam a ocupação da Amazônia, com o famoso slogan “integrar para não entregar”. Os Projetos Integrados de Colonização (PICs), organizados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), incentivavam as migrações com a doação de terras e o empréstimos de recursos para o desenvolvimento da agricultura e da pecuária. Efetivamente, foi só a partir de 1975, após tentativas fracassadas, que a mobilização passou a ter resultados expressivos.

Colatina: enchente de 1979

Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época. Acervo | A Gazeta
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época
Em 1979, água invadiu casas e comércios de Colatina; prejuízo foi tido como "incalculável" na época

Para comparação, o Censo de 1980, do IBGE, registrou 32.765 capixabas que foram morar em Rondônia. Em 1991, este número saltou para 75.668 e atingiu 83.480 no Censo de 2000. No último Censo, de 2010, o número caiu para 69.584, apesar da expectativa de que ele tenha voltado a crescer (leia mais abaixo). Se todos eles morassem em um mesmo município, por exemplo, equivaleria a 12ª cidade mais populosa do Espírito Santo, posto ocupado por Nova Venécia, com 50.751 moradores.

O fluxo foi tão grande, que até hoje Colatina conta com uma linha direta de ônibus até Porto Velho, em Rondônia, em uma viagem que, atualmente, leva 48 horas, mas que na época chegava a durar uma semana. A periodicidade varia, mas na maior parte do ano, há cinco viagens de ida por semana.

83.480

número de capixabas residindo em Rondônia em 2000

Dificuldades em Rondônia

Colatina conta com linhas diretas para Rondônia quase todos os dias
Colatina conta com linhas diretas para Rondônia quase todos os dias. Crédito: Reprodução/A Gazeta

Apesar da promessa, a estrutura que esperava os capixabas em Rondônia não era tão organizada. Em um relatório produzido pela Polícia Federal, por meio da Delegacia de Prevenção e Repressão a Entorpecentes, e entregue à CPI do Narcotráfico, em 2000, os agentes relataram que “sem outra alternativa para saldar compromissos e sobreviver com suas famílias”, os migrantes recorreram ao tráfico de drogas e ao comércio de cocaína como “forma emergencial para obtenção de recursos”.

O professor do Ifes e doutor em Geografia Tiago Dalapicola pesquisa desde 2007 a migração de capixabas do Noroeste do Espírito Santo para Rondônia. Ele conta que era divulgado na época que os migrantes receberiam insumos, sementes e ferramentas de trabalho. Mas, ao chegar na Amazônia, muitas vezes após viajar dias em carrocerias de caminhões, encontravam condições bem desfavoráveis.

Tiago Dalapicola

Doutor em geografia

"É preciso entender que o Estado brasileiro tem uma dívida muito grande com essas pessoas, enganadas e abandonadas à própria sorte. Eram pessoas humildes, que com muita resiliência enfrentavam as condições de estiagem, crises financeiras e falta de terras desde a década de 1930. Muitos já vinham de um histórico de migrações, do Sul da Bahia e Norte de Minas para o Noroeste do ES e foram para Rondônia em uma nova tentativa de iniciar a vida "

Assédio de traficantes

Embora haja registros antigos do consumo de drogas no Brasil, foi só a partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980 que o tráfico se tornou um mercado potente economicamente. É nesse período que surgem as principais facções criminosas do Brasil e do mundo. Os maiores produtores eram o Peru e a Bolívia. O Rio de Janeiro e o Espírito Santo foram alguns dos primeiros escoadores da droga pelo Brasil.

Inicialmente, eram pequenos traficantes de Minas Gerais e do Espírito Santo que solicitavam aos parentes que migraram para Rondônia para que fornecessem pequenas porções de cocaína.

Relatório da Polícia Federal

Entregue à CPI do Narcotráfico, em 2000

"Com o passar do tempo e o crescimento do negócio, multiplicaram-se linhas de ônibus regulares – hoje seis empresas exploram o trajeto Porto Velho/RO x Colatina/ES – surgindo também linhas clandestinas que partem de cidades do interior de Rondônia e destinam-se basicamente a cidades mineiras situadas na divisa com o Espírito Santo, como é o caso de Resplendor, Mantena e Aimorés/MG de onde atingem os maiores polos de entrada da droga de Rondônia no Estado do Espírito Santo: a macrorregião de Colatina"

Outra maneira de enviar drogas ao Estado era pelos próprios Correios. Como a violação de correspondência é crime, a ação policial, segundo a PF, foi dificultada. O transporte facilitado levou ao crescimento da procura e ao desenvolvimento das quadrilhas no Espírito Santo.

Para atender a demanda, os traficantes passaram a usar carros de passeio, aviões de carreira, pequenas aeronaves e, principalmente, caminhões. No auge da Conexão Sudeste, como a rota entre o Espírito Santo e Rondônia foi apelidada, eram transportadas mensalmente quase uma tonelada de cocaína.

De acordo com o relatório final produzido pela CPI do Narcotráfico, conduzida pelo Congresso Nacional, havia indícios de participação de membros da Polícia Civil e Militar, do Poder Judiciário, de deputados estaduais e prefeitos de cidades do Espírito Santo como membros da rede do crime organizado no Estado, alimentada pelo tráfico de drogas da Conexão Sudeste.

A malha viária entre Rondônia e Espírito Santo, a possibilidade de escoamento pelo Porto de Vitória, além do número de pistas de pouso clandestinas no Estado, coloca o território capixaba como alternativa natural para grupos estrangeiros.

Chefões do tráfico no ES

Entre os dois principais chefes do tráfico de drogas no Estado, atores da Conexão Sudeste, estavam o empresário e exportador Antônio Carlos Martins, o Toninho Mamão, e o holandês Ronald Von Coolwijk, ambos presos por tráfico internacional de drogas, em 1995. Na época, eles foram pegos em flagrante tentando embarcar com 630 kg de cocaína para a Europa. A droga estava em um depósito no Porto de Capuaba, em Vila Velha, camuflada entre sacos de pimenta-do-reino e cravos-da-índia.

Fernandinho Beira-Mar, em 2015, durante julgamento no Rio de Janeiro
Fernandinho Beira-Mar, em 2015, durante julgamento no Rio de Janeiro. Crédito: Brunno Dantas/TJRJ

Outro que fixou base no Espírito Santo foi o então líder do Comando Vermelho, principal facção criminosa do Rio de Janeiro, Fernandinho Beira-Mar. O traficante lavava o dinheiro do tráfico nas cidades de Guarapari e Alfredo Chaves, construindo imóveis e investindo em pequenas empresas.

Beira-Mar também se beneficiava da rota da Conexão Sudeste, mas sua atuação passava por Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul e, naturalmente, Rio de Janeiro, onde começou a atuar. Além disso, o comércio ilegal de armas e drogas de Beira-Mar acontecia em países como Paraguai, Colômbia, Bolívia e Suriname, conforme relatório da CPI do Narcotráfico.

O traficante comandava um dos esquemas mais sofisticados de tráfico internacional até então. Segundo depoimentos colhidos durante a CPI, grandes quantidades de drogas eram embarcadas em aviões na Colômbia e jogadas no mar em tonéis, na costa do Espírito Santo e Rio de Janeiro. Iates e outras embarcações recolhiam os tonéis, os localizando por GPS (algo bem moderno para a década de 90), e conduzia até navios cargueiros que iam para a Europa.

O traficante carioca, que cumpre pena desde 2001 quando foi preso em uma caçada na amazônia colombiana, chegou a ficar no presídio de Segurança Máxima de Rondônia, mas foi transferido em maio deste ano para uma penitenciária no Rio Grande do Norte.

O holandês Ronald Van Coolwijk fugiu da prisão em 1997, ficou foragido e foi capturado em 2012, na Itália. Ele foi extraditado para o Brasil em 2012, onde cumpre o restante da sua pena, de 20 anos de prisão, por tráfico internacional de drogas. 

Capixabas em Rondônia: fama de violento e fluxo contínuo

Mesmo após 60 anos, a migração entre o Noroeste do Espírito Santo e Rondônia segue em fluxo contínuo, ainda em 2022. De acordo com o geógrafo Tiago Dalapicola, existem novas expansões de capixabas no território amazônico, criando uma espécie de corredor, próximo à fronteira com a Bolívia, que se estende da divisa de Rondônia com o Mato Grosso do Sul até o Acre, no extremo Oeste do Estado.

Aeroporto de Cacoal, em Rondônia: no século XXI, migração de capixabas já acontece por vias aéreas
Aeroporto de Cacoal, em Rondônia: no século XXI, migração de capixabas já acontece por vias aéreas. Crédito: Divulgação/Governo de Rondônia

"No passado, eram pessoas mais humildes, principalmente da zona rural. Nas nossas últimas visitas a campo, identificamos o surgimento de novos perfis, de capixabas com um padrão de vida consolidado, que continuam buscando novas áreas para expandir seus negócios. Hoje já não há mais pessoas ganhando terrenos de graça, mas comprando com preços baixos", relata.

Se hoje a presença capixaba já é mais consolidada em Rondônia, com representações da cultura do Espírito Santo em comércios, nomes de ruas e bairros no Norte do Brasil, no passado, havia certa insegurança com os espírito santenses. Nos anos 1960, o Noroeste capixaba ainda vivia conflitos de terras e crimes de pistolagem que tinham origem na Guerra do Contestado, na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais, ainda no século XIX. Até mesmo no Espírito Santo, o Noroeste era encarado como uma terra do "bang-bang". A má fama também embarcou rumo à Rondônia.

Tiago Dalapicola

Doutor em Geografia

"Existe, sim, essa má fama de ser mais violento. É uma crença que percebemos em campo. Lembro de uma situação que tentamos entrevistar uma pessoa e tivemos muitas dificuldades. Antes mesmo de chegar em Rondônia, alguns já tinham vivido aqui no Espírito Santo essa cultura da colonização, de abrir novas áreas e de uso da violência"

O pesquisador, contudo, destaca que, assim como qualquer grupo humano, há relações "ruins", como a violência, mas também "boas", de pessoas humildes tentando sobreviver. "São capixabas, descendentes de imigrantes italianos do Sul, de mineiros e baianos que fugiam da seca, que trazem quase que uma vocação natural para enfrentar adversidades. Os laços com a Amazônia e o Noroeste estão fortes até hoje, seja por relações familiares, de rondonenses que vem ao Espírito Santo em busca de tratamento médico, por exemplo, ou até pelo suporte familiar e econômico entre as duas regiões", analisa Dalapicola.

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