"Bola rolando! Começa o jogo entre Vasco e Botafogo. E lá vem Christiano dominando a bola. Ele passa pelos volantes, dribla um, dribla dois, sai da marcação da defesa e parece que vai arriscar de longe. Chutou para o gol e... Bateu na trave!"
A partida narrada realmente aconteceu, em 1967. Mas não em um campo de futebol, nem com jogadores do Vasco e do Botafogo. Ela se deu nos corredores do Palácio Anchieta, em Vitória, sob os tacos de madeira e com a bola desviando de castiçais. Os protagonistas desse jogo foram Christiano Dias Lopes Neto, na época com 6 anos, e um dos funcionários da limpeza da sede do governo chamado Rufino que, para divertir o primogênito do então governador Christiano Dias Lopes Filho, entrava na brincadeira.
"Ele era um cara muito extrovertido, muito brincalhão, e eu um moleque, filho do governador, adorava jogar bola. Então, a gente fazia nossas partidas no Palácio. Eu era botafoguense e ele vascaíno e ele narrava os jogos imitando um radialista. Aquilo era uma farra", lembrou.
Veja o vídeo com as histórias:
Por quatro anos, a sede do governo foi local de moradia para a família de Christiano. Na época, período da ditadura militar, os governadores tinham costume de morar na ala residencial do Palácio Anchieta. Desse período, o último governador a morar no prédio foi Eurico Rezende, que deixou o imóvel em 1983.
Quase vinte anos depois, José Ignácio Ferreira voltou a fazer do Palácio Anchieta residência, em 1999. Depois dele, contudo, o prédio passou por uma obra de restauro, a maioria dos cômodos virou sala administrativa e a ala residencial deixou de ser ocupada.
Hoje, alguns espaços ficam abertos à visitação, como um dos quartos de hóspedes. A suíte do governo é mantida, mas restrita ao chefe do Executivo e não mais utilizada como um dormitório.
Apesar de não serem mais os mesmos, os cômodos fazem parte da lembrança de Rubia Dias Lopes Nunes, irmã de Christiano. Ela se mudou para o Palácio quando tinha 3 anos, logo após o pai ser escolhido pela Assembleia Legislativa para comandar o Estado, em 1967.
"Papai sabia que teria muitas atribuições, e para conciliar o trabalho de governador com a família, resolveu levar a gente para perto dele. Tão perto que a gente dormia todo mundo no mesmo quarto, fazia as refeições juntos, tinha uma rotina normal", contou.
Para Rubia e Christiano, que estavam acostumados a morar em um apartamento pequeno no Parque Moscoso, viver na sede do governo parecia um conto de fadas.
Rubia Dias Lopes Nunes
Filha do ex-governador Christiano Dias Lopes Filho
"Foi uma coisa deslumbrante para a gente ir morar no Palácio, naquela imensidão toda, com todos aqueles salões, aquele luxo, móveis antigos, maravilhosos"
"Quando eu cheguei lá no Palácio, eu pensei: 'Meu Deus, isso aqui é o paraíso, eu estou em um conto de fadas'", acrescentou Christiano. O prédio completa 470 anos em 2021.
PRISÃO?
Mas nem todos se sentiram em casa quando moravam no Palácio. Para alguns, o local parecia uma espécie de prisão. Era essa a sensação que tinha o fundador da Rede Gazeta Cariê Lindenberg – que faleceu no início deste ano – quando viveu na sede do governo entre 1947-1951, durante o primeiro mandato do pai, Carlos Lindenberg.
"Era uma prisão. Em vez de ser um motivo de alegria, você tinha problemas para jogar bola, tinha que ir lá para o terraço e tinha também ocupações com terceiras pessoas que vinham visitar o governador. Era um negócio meio irreal", contou Cariê em entrevista para a TV Gazeta em dezembro de 2018.
Quem também não teve uma boa experiência no local foi Arthur Gerhardt, que governou o Estado entre 1971 e 1975. Ele conta que viveu com os filhos e a esposa na sede de governo apenas durante os seis primeiros meses de mandato, mas foi o suficiente para perceber que não queria ficar ali.
Arthur Gerhardt
Ex-governador do Espírito Santo
"Eu não tenho nada contra o Palácio, é um prédio histórico. Por isso mesmo, eu sabia que lá não era lugar de morar, muito menos de criar quatro filhos pequenos"
A ex-primeira-dama Maria Clementina Vellozo Santos ressalta que havia muitas dificuldades para se morar no palácio. Além da falta de conforto e privacidade, não havia estrutura para receber as famílias.
"Não tinha comodidade para as crianças, não tinha armário para as roupas, não tinha cama nos quartos. Eu senti muita falta também de uma biblioteca, tanto que na minha época peguei uma daquelas salas lá coloquei umas coleções que eu tinha comprado", lembrou.
Para os filhos do casal, que na época eram crianças, os dias no Palácio foram uma espécie de "tortura". Acostumados a frequentar a praia, andar de bicicleta e andar livremente pelas ruas, eles tiveram que se adaptar a uma nova situação, onde o comportamento esperado não era o que eles tinham.
Luciana Vellozo Santos
Filha do ex-governador Arthur Gerhardt
"Para nós, foi muito difícil morar no Palácio, porque a gente sempre foi muito livre. E lá era como se a gente estivesse preso "
"O Palácio não era um lugar que você se sentia à vontade para levar seus amigos, para ficar batendo papo, para conversar, para jogar. Não existia isso. Era até meio deprimente", complementou Luciana.
Para passar o tempo, ela e os irmãos improvisavam brincadeiras nos corredores, sempre sob os olhos atentos dos funcionários. Em alguns momentos, tentavam fugir, mas eram "capturados" pelos seguranças.
"No início, antes de a gente aprender como fugir, a gente brincava de pique, de esconder, jogava futebol. Tinha uma regra que não podia chutar para cima, porque corria o risco de pegar no lustre. Mas quando a gente começava a jogar, os funcionários ficavam loucos, saíam correndo retirando castiçal", se recordou Arthur Carlos Gerhardt Santos Filho.
MOMENTOS MARCANTES
Apesar do desconforto e de algumas dificuldades, as famílias que moraram no Palácio Anchieta viveram momentos marcantes ali. Por estarem dentro de uma sede de governo, conviveram com pessoas importantes e tiveram experiências que jamais teriam fora daquele espaço.
"Quando tinha um evento cultural em Vitória, as pessoas iam ao Palácio, como Paulo Autran, Tônia Carrero, Ziraldo, Rubem Braga, porque elas conheciam o papai. Então, a gente também conviveu com pessoas que habitualmente a gente não conviveria, que pensavam em um novo Espírito Santo. Isso foi uma experiência muito positiva", lembra Cristina Vellozo Santos, filha mais velha de Arthur Gerhardt, que na época tinha 14 anos.
Para o irmão mais novo de Cristina, Alexandre Vellozo Santos, morar no Palácio lhe permitiu viver um momento na infância que ele nunca mais tirou da cabeça, mas que só soube da importância anos depois.
Ele foi a primeira criança vacinada no Brasil na campanha de poliomielite, em 1971, em um projeto-piloto implantado no Espírito Santo que teve a presença do ex-presidente Emílio Médici.
"Falaram para mim que eu ia tomar uma vacina no Palácio Anchieta, e eu fiquei morrendo de medo, não queria de jeito nenhum. Eu era criança, tinha 6 anos, só conseguia pensar na agulha. Até que, na hora, aplicaram duas gotinhas na minha boca. E eu pensei: 'Ah, é isso?' Até que as gotinhas eram gostosas", brincou.
O Palácio também permitiu a Christiano Dias Lopes Neto participar de uma forma singular de outro momento marcante no país: a vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1970. Ele lembra que, dentro do Palácio Anchieta, segurou a taça da Seleção Brasileira, que veio para o Espírito Santo.
Christiano Dias Lopes Neto
Filho do ex-governador Christiano Dias Lopes Filho
"Eu era fanático com futebol. Então, segurar a taça foi um negócio de outro mundo, um coroamento para mim. Algo que eu só tive a oportunidade porque eu morava no Palácio"
Sem dúvidas, viver em um patrimônio histórico trouxe uma bagagem de experiências e histórias para quem passou por lá. Mas nada se compara com os valores tirados daquele convívio, que a ex-deputada Luzia Toledo diz fazer questão de cultivar.
Luzia morou no Palácio durante o governo de Rubens Rangel (1966-1967), por quem ela foi criada. Um episódio vivido com ele, nas escadas do Palácio Anchieta, é o que marcou a ex-parlamentar para o resto da vida.
"Eu me lembro de subir as escadas do Palácio correndo, de quatro em quatro degraus, e seu Rubens vinha atrás, bem devagar. Um dia, ele chegou pra mim e disse: 'Guigui, você viu alguém lá embaixo na hora que você subiu?'. Eu falei: 'Não, não vi não'. Ele disse assim: 'Então, Gui, nós vamos voltar lá, porque aquelas pessoas que estão lá embaixo são mais importantes do que eu. Aquelas pessoas que estão lá embaixo guardam a sua vida, guardam a minha vida, guardam a vida de todo mundo que trabalha aqui, de quem vem aqui. Você nem viu, isso mesmo. Então, eu vou voltar com você lá só para você entender como é importante aquelas pessoas lá embaixo estarem ali'. Aí, eu desci e falei: 'Bom dia, senhor. Bom dia, senhor', e subi com ele já devagar pela escada. Nunca mais me esqueci disso e nunca mais deixei de cumprimentar uma pessoa pela minha frente."
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SÉRIE: PALÁCIO ANCHIETA 470 ANOS
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