De início, ela chegou como uma visita educada, entrando aos poucos. Depois, já cobria algumas partes das casas e as varridas tiveram que se tornar mais frequentes. Com o passar do tempo, tomou o cemitério e chegou à Igreja de São Sebastião. Foi assim, lentamente, que a antiga Vila de Itaúnas, em Conceição da Barra, no Norte do Espírito Santo, acabou soterrada pela areia.
O antigo povoado tinha cerca de 300 casas, duas padarias, uma agência dos Correios, uma escola e duas ruas com nomes complexos: a Rua de Cima e a Rua de Baixo. Desde meados da década de 1970, tudo o que sobrou do pequeno vilarejo está embaixo das dunas, que já têm mais de 30 metros de altura. Vez ou outra ainda dá para ver parte do mastro da igreja.
Jornal A Gazeta
Trecho da edição de 24 de outubro de 1993
"A areia foi avançando e só chamou atenção da população quando sepultou o cemitério da vila, obrigando a comunidade a providenciar outra área para enterrar os mortos"
A antiga vila ficava entre o mar capixaba e o Rio Itaúnas, ao lado da faixa de areia da praia, no caminho do forte vento nordeste. O processo de soterramento durou dezenas de anos. Especialistas, historiadores e moradores dão conta de que as últimas pessoas que tentaram permanecer deixaram a região entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970.
A VERSÃO OFICIAL
A particular história da antiga vila poderia muito bem render um filme — e rendeu. Nascido no Rio de Janeiro e erradicado no Espírito Santo, o cineasta Orlando Bonfim gravou um documentário no formato de curta-metragem cujo título é Itaúnas: Desastre Ecológico (1979) e trata da devastação da Mata Atlântica. Esta, aliás, é a versão mais aceita para explicar o soterramento.
Servidor e ex-gestor do Parque Estadual de Itaúnas, o técnico em meio ambiente Tarciley Gonçalves de São José explica que a restinga — ambiente com vegetações adaptadas ao solo arenoso e típico de áreas costeiras — serve para estabilizar a movimentação da areia e que a retirada dela causou o problema.
"O principal motivo foi o desmatamento. Tecnicamente, é o que a gente defende. Estudos mostraram que a areia se movimenta cerca de cinco metros por ano. Todo dia, o morador acordava com um pouco de areia na porta e a tirava. Alguns mudaram de rua, mas a areia continuou avançando", afirma.
1972
É o ano do registro de saída da última família da antiga Vila de Itaúnas
Em 1995, o mesmo fenômeno também foi relatado no jornal A Gazeta. "Segundo historiadores, começou em meados da década de 1930, devido ao desmatamento da mata existente entre a praia e o povoado. Em resposta à agressão, o deslocamento da areia continuou progressivamente até 1970, época em que algumas famílias ainda resistiam à invasão."
Realizado pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema), o site oficial do Parque de Itaúnas traz que essa história é a que "prevalece". No entanto, admite que existem versões diferentes em relação ao tempo de duração do processo de soterramento da antiga vila, das causas que levaram a isso e de quando tudo teve início.
PRAGA DE PADRE?
Para além do que realmente se sabe, o ambientalista Tarciley comenta que há várias explicações para o princípio do desmatamento na região. "Alguns falam que era para ampliar o plantio de culturas anuais, como o feijão e a mandioca. Outros dizem que era porque dava muito mosquito por ali", exemplifica.
O historiador Fernando Achiamé ainda cita outras duas razões que foram ventiladas ao longo do tempo. "Tem relatos que uma família foi retirando a vegetação para fazer um campo e aquilo teria perdido o controle. Alguns argumentam que as árvores foram retiradas para fazer lenha..."
Entretanto, a versão "oficial" é firmemente refutada por Ângelo Camillo, outrora pescador e morador da Vila de Itaúnas. Popularmente conhecido como Caboquinho, ele garante que não houve desmatamento na restinga. "Só se foi antes de 1940", afirma. É dele também que surge a lenda mais curiosa.
Ângelo Camillo
Aposentado e morador da antiga Vila de Itaúnas
"Teve quem falasse que era uma praga de padre, mas a areia foi simplesmente crescendo e, ainda hoje, ela anda. O soterramento é um mistério"
Nascido e criado no antigo vilarejo, ele vivia com os pais e na companhia de oito irmãos, em uma casinha na Rua de Cima. Ainda adolescente, na década de 1950, ele continuou na região, mesmo após parte da família deixar o local. "Até que a areia chegou e fomos obrigados a desmanchar tudo", conta.
Segundo Ângelo, todas as casas da região eram feitas de barro e madeira. "A areia era muito educada. Ficava dois ou três anos rondando para dar tempo de a gente tirar as coisas", lembra. "Eu saí em 1960, porque não tinha mais como ficar, mas muita gente já tinha saído naquela época", completa.
A NOVA VILA
Diante da impossibilidade de controlar a natureza, mas também da necessidade das pessoas de um novo lugar para morar, o Poder Público realizou a compra de uma propriedade rural para abrigar a nova Vila de Itaúnas. Desta vez, o vilarejo foi (re)construído na margem sul do rio homônimo.
"A antiga vila fica nas dunas. Como o soterramento estava saindo do litoral para o continente, optaram por mudar para o interior e por sair da rota da areia. Se você estiver nas dunas, de costas para o mar, a nova vila está a cerca de um quilômetro para a diagonal esquerda", explica o servidor do parque, Tarciley.
1958
Ano em que foi criada a nova vila, que hoje é a sede do distrito de Itaúnas
Enquanto o soterramento e a criação da nova vila aconteciam, a região viveu uma decadência econômica. "A produção madeireira foi acabando e locais do interior de São Mateus e Conceição da Barra começaram a produzir farinha de ótima qualidade, isolando Itaúnas", conta o historiador Achiamé.
A fama de "destino paradisíaco" atual surgiu apenas na década de 1980. "Houve uma redescoberta: era uma vila pequena ótima para veraneio. Naquela época, não tinha ponte e a travessia era feita de bote. Virou um point, um local meio hippie, com uma cultura alternativa, de paz e amor", revela.
PRESERVAÇÃO
Também no final do século XX, o Projeto Tamar deu início às atividades de preservação das tartarugas marinhas na região. As ações de educação ambiental aliadas ao maior número de visitantes geraram uma pressão sobre o governo do Estado para proteger os ecossistemas locais.
Assim, em 1984, teve início o processo de tombamento do "Monumento Natural Dunas de Itaúnas", cujo objetivo era garantir que o desenvolvimento turístico da região acontecesse de forma ordenada e não predatória. A decisão unânime a favor dessa preservação foi oficializada dois anos depois.
"O parecer técnico mencionava que a região é extremamente delicada, contendo em um nicho ecológico: a praia, as dunas, um extenso pântano e o Rio Itaúnas, além de um sítio arqueológico. O tombamento foi realizado devido à importância local e pela preservação de toda a riqueza biológica, geológica e arqueológica", esclarece a Secretaria de Estado da Cultura (Secult).
Já em novembro de 1991, foi criado o Parque Estadual de Itaúnas — onde as dunas estão inseridas. A área de quase 3.500 hectares abrange o Riacho Doce, no limite entre os municípios de Conceição da Barra e Mucuri (BA), o distrito de Itaúnas, as duas margens e a foz do Rio Itaúnas, e as áreas de restinga e manguezal. Só de praia são mais de 25 km de extensão.
NOVO SOTERRAMENTO?
Apesar das medidas visando à preservação, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) precisou fazer um monitoramento e intervir para evitar um novo processo de soterramento por volta de 2012, "devido à ação do vento que levava a areia para a parte alagada do parque e soterrava a estrada".
Depois dos levantamentos, o Iema realizou um projeto de recuperação da área degradada, por meio da "revegetação das dunas" com o plantio de espécies nativas que se adaptaram ao local, a fim de "segurar a areia e evitar tais problemas". Desta vez, o episódio, não passou de um breve "dejavù".
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