Pouco habitada e atualmente sob proteção ambiental, a Ilha de Trindade, a cerca de 1.200 km da costa do Espírito Santo, sofreu uma intensa devastação da área de mata a partir do século XVIII. E o motivo disso? A introdução de cabras na região por Edmond Halley, um dos cientistas mais famosos do mundo, cujo reconhecimento veio após descobrir o cometa que acabou batizado com o sobrenome dele.
Os animais, que foram trazidos e se reproduziram em grande quantidade, consequentemente causando a extinção de plantas, chegaram à região após uma viagem do cientista até à Ilha de Santa Helena, entre o Brasil e a África, por volta de 1700. Segundo o professor do departamento de Botânica da Universidade de Brasília, Paulo Câmara, o objetivo era garantir alimentação para futuros viajantes.
"Tudo indica que o Halley passou em Trindade para fazer umas observações astronômicas. Mas, antes, ele parou em Santa Helena, de onde pegou as cabras. A ideia é que se um náufrago chegasse à ilha, teria o que comer. O que, claro, nunca aconteceu", contou Câmara, que também é pesquisador do tema.
Paulo Câmara
Professor e pesquisador do tema
"Elas comem praticamente quase tudo. Comem planta com raiz, semente, fruto. E também tem o efeito do pisoteio, que interfere na vegetação"
Professor titular do Departamento de Botânica do Museu Nacional, Ruy Valka Alves explica que outros animais também foram incorporados ao local, como porcos, ovelhas e galinhas. Alguns portugueses ainda chegaram a morar na região no século XIX e deixaram as espécies para trás, além de terem causado uma significativa degradação humana.
O antes e o depois da vegetação de Trindade após extinção das cabras
"Ninguém nunca fez um censo de verdade. Em qualquer lugar e momento da história, inclusive hoje, não é fácil traçar uma estimativa. Mas alguns cientistas trabalham com o número de 700, 800 cabras, e centenas de ovelhas, burros e outros animais domésticos. É possível terem vivido cerca de 3 mil animais na ilha, simultaneamente", informou.
Mortes em massa
Foi preciso um trabalho árduo dos pesquisadores para que as cabras desaparecessem da região. De acordo com Ruy Valka, que acompanhou o início da ação de extermínio dos animais, houve muitas reuniões e manifestações de especialistas.
"Entrei em contato com a Marinha (responsável pela Ilha) e disse que a água potável da ilha ia acabar, porque ela depende da vegetação. As Forças Armadas se mexeram, entenderam que o risco era real e, depois de muitos anos de negociação, os fuzileiros foram finalmente colocados em uma missão", afirmou.
Paulo Câmara
Professor e pesquisador do tema
"Nesses 20 anos sem cabras na ilha, a vegetação mudou muito. Atualmente tem até uma cachoeira, que antes não aparecia. Ela chegou a ser citada na literatura, por volta de 1600, mas só agora apareceu de novo. Houve um impacto significativo"
As diversas tentativas de erradicação, conforme pontuou o pesquisador, começaram a ser feitas em 1957. Houve "missões" também entre as décadas de 1990 e 2000, mas que precisaram ser feitas em etapas, devido a alguns problemas de execução. Em 2002, por exemplo, o relevo de Trindade dificultou o acesso a muitas localidades, e apenas cerca de 200 cabras (de aproximadamente 800) foram eliminadas.
Outra dificuldade foi que muitas cabras encontraram abrigo em áreas isoladas, o que causou o atraso da ação da Marinha. Em certa ocasião, os atiradores usaram até um helicóptero. Somente em 2005, mais de 30 anos depois, os últimos caprinos foram eliminados.
Em 2004, de acordo com uma pesquisa publicada na Revista Albertoa, a ilha tinha 65% da superfície coberta por vegetação – sendo apenas 5% de florestas.
Nova ameaça
Anos após a retirada desses animais, um novo problema começou a preocupar os especialistas: a disseminação da planta que colocam em risco de extinção uma espécie de grama que só existe na Ilha de Trindade. A ironia, porém, é que a Guilandina, como foi nomeada, era controlada especialmente pelas... cabras. A descoberta aconteceu em uma expedição à ilha, em junho de 2012.
"O mecanismo da Guilandina é por competição de água, ou seja, sugando os líquidos do capim e matando ele de sede. Agora, como elas não têm um predador, começaram a se proliferar. A expectativa é que, daqui a algumas décadas, esse capim suma", afirmou Paulo Câmara.
De acordo com os pesquisadores, essa ameaça pode se tornar, inclusive, da mesma magnitude que a provocada pelos mamíferos. "Pode, sim, se tornar uma verdadeira praga", destacou o professor.
Ruy Valka pontuou ainda outro perigo que tem surgido na região. "São os camundongos. Dos roedores e invasores, ele é o mais inteligente, e depende dos restos orgânicos que as pessoas guardam ou jogam fora. Já foi comprovado por um artigo cientifico que ele é um potencial transmissor de doenças", completou.
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