É difícil que algum capixaba não tenha ouvido falar do Hospital Estadual Doutor Jayme dos Santos Neves, que fica no município da Serra. Referência por anos durante a pandemia do coronavírus e maior hospital público do Espírito Santo, a unidade foi inaugurada em 2013. Mas você sabe quem foi o médico que dá nome à construção?
Jayme dos Santos Neves ganhou destaque no combate a uma doença respiratória muito temida, a tuberculose, transmitida via oral. Além de afetar gravemente o pulmão, causou a morte de milhares de pessoas. Por um bom tempo, não havia tratamento específico nem vacina.
Natural de Vitória, Jayme nasceu em 24 de agosto de 1909. O título de "doutor" chegou em 1932, quando ele se formou em Medicina na Faculdade Nacional, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, ele já estava de volta ao Espírito Santo e dava início a um dos principais feitos: o Sanatório Getúlio Vargas.
Por esse nome, talvez lhe pareça pouco familiar, mas o sanatório deu origem ao atual Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). No longínquo ano de 1930, porém, o criador ainda conversava com o interventor do Estado e tentava obter recursos para fundá-lo.
"A próxima etapa se referia à escolha do terreno. Depois de muito procurar, Dr. Jayme se lembrou que em 1917, em um surto de febre amarela, seu pai isolou toda a família em uma fazenda em Maruípe, região afastada do centro da cidade e ainda pouco urbanizada", revela Maria Zilma Rios, na dissertação de mestrado.
A construção começou em 1938, com um orçamento de 700 contos de réis e um prazo de quatro anos. Oficialmente, o sanatório foi inaugurado em 29 de outubro de 1942, mas só passou a funcionar em 15 de dezembro, com capacidade para 90 pacientes. Os primeiros foram 13 mulheres, com casos terminais de tuberculose.
Naquela época, o município de Vitória vivia uma epidemia da doença e tinha um dos maiores índices de mortalidade do Estado e do país: com 500 óbitos por ano a cada 100 mil habitantes. Apesar disso, dezenas de profissionais se dedicaram a cuidar, por longos períodos, de quem era infectado pelo bacilo de Koch.
"Quando fiz a pesquisa, perguntava para cada pessoa: 'Você tinha medo de trabalhar lá?'. Todos me respondiam: 'Não', porque sabiam que lá todos tinham tuberculose e, fora dali, não sabiam. O uso de touca, avental e luva era obrigatório", conta Maria Zilma, que era coordenadora do Centro de Documentação do Hucam à época desta reportagem, originalmente publicada em 2021.
O empenho ia muito além do mero horário de expediente, inclusive para Jayme dos Santos Neves, que tinha na própria sala um mapa com as regiões de Vitória no qual usava alfinetes coloridos para mapear a tuberculose: os vermelhos apontavam os casos, os brancos indicavam os curados, e os pretos eram os óbitos.
Detalhes como esse estão disponíveis em gravações entre o médico e a bibliotecária Elidia Maria Frazin, funcionária do sanatório. Assim como medalhas, diplomas e diários, essas fitas fazem parte da coleção Jayme dos Santos Neves, doada por ela em dezembro de 2018 ao Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES).
"Passei a considerá-lo um estrategista em relação à saúde, como poucos. Era um idealizador, muito à frente de seu tempo. A saúde pública capixaba começa com o Jayme dos Santos Neves e acho que a Elidia enxergava toda essa importância e não deixou se perder no tempo", disse a pesquisadora Maria Zilma.
Saída de um convento em São Paulo, a aposentada Elidia vivia à época da publicação da reportagem no Centro de Vitória e lembrou da data exata em que conheceu o médico: 14 de novembro de 1957, quando ela bateu na porta do Sanatório Getúlio Vargas, em busca de um emprego. Tinha início um convívio que durou mais de quatro décadas.
Autointitulada "eterna admiradora e apaixonada", a ex-bibliotecária considera Jayme um santo e relembra de um fato emblemático, também retratado por jornais da época. "Um dia, ele pegou um papel cartão, colocou a mão em cima e a contornou. Só que ele já tinha perdido três dedos", conta rindo.
*Abreugrafia era um método brasileiro rápido e barato de tirar pequenas chapas radiográficas dos pulmões para facilitar o diagnóstico da tuberculose. O teste, que registra a imagem do tórax em uma tela de raio X, espalhou-se pelo mundo.
Da época em que trabalharam juntos no sanatório, Elidia lembra de um episódio que envolveu um paciente velho e pobre, com caso avançado de tuberculose, cujo nome era João Alves. Graças aos cuidados do Jayme, ele se curou, teve alta e voltou uma semana depois para agradecer, com um saco com cocos.
"Era uma estopa, amarrada com barbante e uma folha de caderno pendurada, com o escrito: 'Ao meu amigo e glorioso médico'. Emocionado com o ato, Jayme abraçou o paciente, fez uma ausculta e elogiou a cara de saúde. Depois, me entregou o bilhete e pediu: 'Por favor, guarde bem guardado. É o meu maior diploma'."
Já idosos, os dois saíam para caminhar pelo campus da Ufes. O tempo era livre, mas o médico não tirava folga. "Ele saiu correndo para socorrer um cara que estava tendo um ataque epilético. Ficou segurando a cabeça dele, para não bater no meio-fio. Não posso descrevê-lo. Foi um sujeito de alma grande", lembra Elidia.
Ainda em 1933, o médico recém-formado também fundou a Liga Espírito-Santense Contra a Tuberculose, se tornando o primeiro tisiologista a combater a doença no Estado. Depois de 50 anos, ele comemorou o aniversário da entidade, que sempre sobreviveu sem qualquer verba pública.
Entre as décadas de 1940 e 1950, ele teve uma importância ainda maior. À frente do Departamento de Saúde do Espírito Santo, estipulou divulgações mensais de dados bioestatísticos estaduais, contribuição dos municípios com 5% da arrecadação e plantões em domingos e feriados no Centro de Saúde da Capital.
O Estado também passou a ser dividido em sete distritos sanitários, que funcionavam como as atuais regiões de saúde. Eles tinham sede em Vitória, Cachoeiro de Itapemirim, Colatina, Alegre, São Mateus, "Itaguassú" e a extinta João Pessoa (hoje, Mimoso do Sul). As duas primeiras tinham "centros modelos" e os demais, postos.
Na diretoria dos Serviços Sanitários do Espírito Santo, diversas unidades de saúde foram espalhadas no território capixaba. Destaque para a Maternidade de Alegre; o Hospital Colônia Adauto Botelho (atual Hospital Estadual de Atenção Clínica), em Cariacica; e o Hospital João dos Santos Neves (nome do pai), em Baixo Guandu.
Com mais de três décadas, a carreira continuava de vento em popa. Em 1968, ele se tornou consultor da Organização Pan-Americana de Saúde. Depois, entre os anos de 1972 e 1975, atuou como diretor da Divisão Nacional de Tuberculose. Já em 1978, Jayme assumiu a direção do Hospital das Clínicas da Ufes.
Mais tarde, nos anos de 1980, o combate ao tabagismo também passou a contar com a forte presença do Dr. Jayme, que chegou a ser vice-presidente da Comissão Nacional de Combate ao Fumo, criada pelo então presidente José Sarney. Uma das metas era proibir anúncios de cigarros no Brasil, como é atualmente.
No dia 29 de agosto de 1986, comemorou-se o primeiro Dia Nacional de Combate ao Fumo. A expectativa era a aprovação de uma lei pela qual as pessoas ficariam proibidas de fumar em locais fechados, incluindo escolas. "Essa é uma luta antiga dos médicos pneumologistas", afirmou à época, para o Jornal A Gazeta.
Assim, os reconhecimentos foram se acumulando com o passar do tempo: recebeu a medalha de Destaque Nacional de Saúde Pública (1982), o prêmio da Sociedade de Pneumologia e Tisiologia do Rio de Janeiro (1992) e o chamado "Alfredo Jurykowski" pela Academia Nacional de Medicina (ANM).
Integrando a "lista de notáveis" do Espírito Santo, ele também foi considerado uma "referência ética da categoria" e foi homenageado em 18 de outubro de 1997, Dia do Médico, pelo Conselho Regional de Medicina (CRM-ES), pela Associação Médica Estadual (Ames) e pelo Sindicado dos Médicos do Estado (Simes).
Na noite de 8 de novembro de 1998, uma sexta-feira, Jayme dos Santos Neves sofreu um infarto e morreu aos 89 anos de idade. Ele foi enterrado na manhã do dia seguinte, no Cemitério de Santo Antônio, em Vitória, com a presença de amigos, familiares e do então governador do Espírito Santo, Vitor Buaiz.
Em vida, Jayme dos Santos Neves foi casado com Firmiana Loureiro Santos Neves. Os dois permaneceram juntos até que a morte os separou. Viúva, ela compareceu à inauguração do hospital nomeado em homenagem ao companheiro em 2013. No mesmo ano, ela faleceu, aos 103 anos de idade. Juntos, eles tiveram os filhos Janine e Marcos.
Para além do trabalho como médico e da contribuição para a saúde pública capixaba, Jayme dos Santos Neves ainda encontrou tempo para se dedicar a escrever e teve três livros publicados: "O outro lado da história da Companhia de Jesus" e "Cantáridas, poemas fesceninos" em 1984, e "A Centopéia" em 1989.
Na dissertação de mestrado em Letras na Ufes, Felipe de Oliveira Fiuza ajuda a atender um pouco o lado B do médico, ao descrever do que trata o segundo livro, escrito em parceria com dois amigos. "Basicamente consistia em insultar por meio de poemas, sendo que o principal insulto era tratar da orientação sexual dos satirizados", escreveu.
A pesquisadora Maria Zilma Rios também revela que a personalidade dele não era tão sisuda como poderia parecer ao primeiro contato. "Ele era uma pessoa extremamente séria, mas que brincava demais. Muito sarcástico e irônico, sacaneava os amigos, incluindo o meu pai. Era brincalhão, extremamente gozador", conta.
Em reconhecimento aos trabalhos literários produzidos, ele fez parte da Academia Espírito-Santense de Letras, sendo empossado na cadeira de número 25, no dia 5 de novembro de 1986. A homenagem aconteceu no auditório da Rede Gazeta, com autoridades estaduais e membros da entidade literária.
Capixapédia é uma seção do portal A Gazeta que tem como objetivo divulgar curiosidades, fatos históricos, desvendar enigmas e tratar de assuntos diretamente relacionados ao Espírito Santo. Tem alguma curiosidade? Conhece algo incomum sobre o Estado e quer compartilhar com a gente? Mande um e-mail para [email protected]
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta