Ruínas da Igreja de São José do Queimado, no município da Serra, Espírito Santo
Ruínas da Igreja de São José do Queimado, no município da Serra, Espírito Santo. Crédito: Vitor Jubini

Ruínas do Queimado: a revolta por liberdade de negros escravizados no ES

Insurreição ocorreu em 19 de março de 1849, após promessas não cumpridas de liberdade ao fim da construção de uma igreja cujo padroeiro seria São José

Tempo de leitura: 7min
Vitória
Publicado em 20/11/2023 às 13h29

Da maior revolta pelo fim da escravidão no Espírito Santo sobraram ruínas e gritos por liberdade da população negra que ecoam até o presente. Ocorrida em 19 de março de 1849, no município da Serra, a Insurreição do Queimado é presença viva nos fragmentos restantes das construções da localidade aos pés do monte Mestre Álvaro e na literatura. Conheça a história no vídeo abaixo. 

O professor José Antonio Martinuzzo, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), conta que Queimado era freguesia da capital Vitória e tinha enorme relevância, devido a sua posição geográfica.

“Era uma localidade fundamental para Vitória, uma importante conexão entre a Região Serrana e a Capital, devido ao Rio Santa Maria da Vitória. Tudo que era produzido lá em cima era trazido pelo rio, mas o local não tinha um templo que fizesse jus ao lugar”, contextualiza.

Com o catolicismo como religião predominante no Brasil, faltava à vila uma igreja para reunir os moradores em torno da fé católica. Coube então ao frei italiano Gregório José Maria de Bene a missão de erguer um templo, cujo padroeiro seria São José.

Para colocar de pé a empreitada, o religioso contou com o sangue e o suor dos negros escravizados por donos de fazendas da região do Queimado, prometendo a eles a liberdade por meio da alforria, que seria negociada com os fazendeiros.

Convencidos de que seriam libertos, os escravizados trabalharam por quase quatro anos, entre agosto de 1845 e março de 1849, de dia e à noite, carregando pedras até a colina onde a igreja seria instalada, com vista para toda a região, até erguer cada parede.

Informações levantadas pela Fundação Palmares dão conta de que o templo foi construído com pedras divididas por tamanhos, e carregadas por longas distâncias e subidas íngremes. Enquanto as maiores eram levadas por adultos, as pequenas, do tamanho de um punho, eram destinadas às crianças — algumas com apenas seis anos.

Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado vistas de cima, na Serra, Espírito Santo. Crédito: Vitor Jubini

A REVOLTA

Com a alforria prometida no horizonte, os escravizados concluíram a Igreja de São José do Queimado, prevista para ser inaugurada no dia 19 de março de 1849. Nesse dia, no entanto, apenas as portas do templo se abririam. As da liberdade permaneceram fechadas.

Cerca de 200 escravizados se insurgiram e pegaram em armas, tomando as fazendas e constrangendo os fazendeiros a assinar um documento que seria a base da alforria junto ao Império. O grupo era liderado por Eliziário Rangel, Francisco de São José, o “Chico Prego” e João Monteiro, o “João da Viúva”, conforme detalha Martinuzzo.

“Chico Prego era uma liderança junto a Eliziário, era um sujeito que tinha a capacidade de cálculo, de luta, era um guerreiro, com habilidades para produzir uma revolta em escala como teve, enquanto Eliziário era ligado mais às negociações”, conta.

Martinuzzo afirma que, no Espírito Santo, a revolta é considerada um marco na luta antiescravagista e também repercutiu na corte. “Foi tão relevante que o Império mandou reforços e deu toda a atenção policial e jurídica para o sufocamento e julgamento, com execuções de penas, com o objetivo de servir de exemplo para mostrar que revoltas assim não deveriam se repetir”, destaca.

Marcada por extrema violência, a resposta dada pela Polícia da Província pôs fim à insurreição em dois dias, com muitos revoltosos presos, torturados ou mortos imediatamente. Os que escaparam às torturas e castigos dos primeiros momentos foram submetidos a júri, que absolveu seis, condenou cinco à pena de morte e os outros a açoites (chicotadas).

Dos cinco condenados à forca, três fugiram da cadeia. Chico Prego foi enforcado, na Vila da Serra, a 8 de janeiro de 1850, e João da Viúva Monteiro, no Queimado, três dias depois.

Narrativas posteriores ao acontecimento dão conta de que Eliziário protagonizou uma lendária fuga — saiu pela porta da cela deixada aberta —, no que foi considerado pelos escravizados como um milagre atribuído à Nossa Senhora da Penha, padroeira do Espírito Santo. Um tempo depois, o carcereiro confessou ter facilitado a fuga.

Conforme informações levantadas pela Fundação Palmares, Eliziário virou uma lenda para os negros que sonhavam com a liberdade, e foi alcunhado como o “Zumbi da Serra”, em alusão ao herói do Quilombo dos Palmares. Chico Prego ganhou estátua em uma praça no município da Serra, e seu nome batiza a Lei Municipal de Incentivo à Cultura.

RUÍNAS DO QUEIMADO

Com o passar dos anos, a Igreja de São José virou ruína, sendo tombada em patrimônio histórico pelo Conselho Estadual de Cultura em 1992. O terreno do Sítio Histórico do Queimado, que era de propriedade particular, foi doado à Prefeitura da Serra em 2015, em meio a uma promessa do município de revitalização.

Em 2019, a prefeitura anunciou a reestruturação do local, com a proposta de transformar o espaço da igreja em um museu ao ar livre. As intervenções foram realizadas pelo Instituto Modus Vivendi e acompanhadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sendo entregues em 2020.

Uma estrutura de ferro reforçou as paredes centenárias e a fachada foi recuperada com pedras da construção original. Foi instalada uma escada pela qual os visitantes podem subir e contemplar toda a vista do sítio histórico. A igreja não foi totalmente reconstruída, pois a intenção do projeto era justamente o de preservar as ruínas.

Em setembro de 2023, o local foi novamente fechado, para a segunda etapa das obras. Estão sendo construídas calçadas ao redor, além de um centro de apoio a visitantes. Está prevista também uma nova pintura para o templo. A expectativa da Prefeitura da Serra é reabrir o local ao público em fevereiro de 2024.

Ruínas da Igreja de São José do Queimado, no município da Serra, Espírito Santo

Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado. Vitor Jubini
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado. Vitor Jubini
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado. Vitor Jubini
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado. Vitor Jubini
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado. Vitor Jubini
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado. Vitor Jubini
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado. Vitor Jubini
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
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Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado
Ruínas da Igreja de São José do Queimado

HISTÓRIA REGISTRADA EM LIVRO-REPORTAGEM

Coube ao capixaba Afonso Cláudio de Freitas Rosa registrar em palavras a revolta dos negros escravizados em Queimado. Nascido em Santa Leopoldina, em 1859, ele foi estudar Direito em São Paulo e voltou ao Espírito Santo em 1883.

Afonso Cláudio foi advogado, escritor, magistrado, jornalista e professor. Com a Proclamação da República, em 1889, tornou-se, aos 30 anos, o primeiro presidente do Espírito Santo. Mas, antes disso, aos 25 anos, escreveu o livro “Insurreição do Queimado”, publicado em 1885.

Afonso Cláudio de Freitas Rosa
Afonso Cláudio de Freitas Rosa. Crédito: Livro História do Espírito Santo. Crédito: Crédito: Livro História do Espírito Santo / Arte A Gazeta

A obra é considerada, a partir do estudo do professor José Antonio Martinuzzo, do Departamento de Comunicação Social da Ufes, a primeira do gênero livro-reportagem no Brasil.

“A ideia que eu defendo é que pode ser considerado o primeiro livro-reportagem. As pesquisas apontam que o primeiro seria ‘Os Sertões’, de Euclides (da Cunha), publicado em 1902, mas teve a de Afonso Cláudio publicada antes. Fui ver se tinha características do gênero e, sim, é um tipo de narrativa que mistura literatura com jornalismo, traz investigação, tem fato, ouve testemunhas e documentos”, pontua.

A análise de Martinuzzo pode ser lida no livro “Insurreição do Queimado – 140 anos do pioneirismo de Afonso Cláudio no livro-reportagem nacional”, escrito por ele e publicado em outubro de 2023.

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