Samuel Pessôa, doutor em economia pela USP, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office, é um dos economistas mais influentes do país. Em conversa com a coluna, ele se disse bastante animado com a reforma tributária, que, na visão dele, é o maior avanço institucional do Brasil desde o Plano Real (1994) e tem tudo para elevar bastante a produtividade do país. Em compensação, está muito preocupado com a questão fiscal.
"Claro que temos de acompanhar como a regulamentação da reforma irá tramitar, mas eu estou muito animado. Com isso, a questão fiscal passa a ser a grande barreira que impede o nosso crescimento de maneira sustentada".
Confira a entrevista completa:
A maioria dos economistas se mostra preocupada com a parte fiscal do Brasil. Como o senhor acha que acaba este primeiro ano sob o arcabouço fiscal pensado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e com o orçamento feito pelo novo governo Lula?
O desequilíbrio fiscal é o principal problema macroeconômico que o Brasil tem. Disparado. E isso não é uma questão técnica, não estamos falando de um erro. A fala recente do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de que a meta de déficit zero envolve um pacto entre os três poderes está totalmente correta. A construção de uma situação fiscal sólida é uma responsabilidade de toda a sociedade, portanto, os três poderes têm responsabilidade, assim como as três esferas federativas - União, Estados e municípios - têm responsabilidade. O que quero deixar claro é que não se trata de uma responsabilidade apenas do Executivo federal, a não existência de uma situação fiscal solvente sinaliza um problema grave na sociedade e impede um ciclo longo de crescimento econômico. Tem quem ache que produzindo crescimento se resolve o problema fiscal. Não é assim. A evidência brasileira é contrária. Nós só tivemos aceleração do crescimento quando primeiro arrumamos o problema fiscal. Foi assim nos oito anos do presidente Lula (2003 a 2010), por mais que diversos economistas petistas digam o contrário. Basta olhar os dados com o mínimo de cuidado. Saímos de um déficit fiscal estrutural do governo central, em 1997, de 0,5% do PIB para um superávit, em 2003, de 2,7% do PIB. Estes foram anos de baixo crescimento, mas foi construída uma situação fiscal sólida. Na sequência veio uma aceleração do crescimento. Infelizmente o período petista descuidou do fiscal. Começaram com um superávit de 2,7% e, em 2010, último ano do segundo mandato de Lula, ficou em 0,7%. Em 2013, já no governo Dilma Rousseff e antes do início da crise brasileira, tivemos um déficit de 0,2% do PIB. Ou seja, a piora fiscal não foi causada pela crise, ela precedeu a crise. Em 2014, antes do pior da crise, o déficit ficou em 1,8% do PIB. A partir daí é iniciada uma arrumação fiscal. Em 2022, a sociedade brasileira elege um governo de esquerda com o discurso de aumentar os gastos. Verdade seja dita que o presidente Jair Bolsonaro também tinha um discurso de aumentar gastos, afinal, ele disse que manteria o auxílio emergencial de R$ 600. Portanto, era necessário um aumento de gastos fruto da decisão da sociedade. Por isso, a emenda constitucional da transição foi aprovada. Eu acho que ela ficou um pouco salgada demais, daria para atender as necessidades da sociedade com menos, mas a decisão do Congresso, com grande apoio dos formadores de opinião, foi em outra direção. O déficit primário estrutural do governo central, no ano passado, ficou em 1,6% do PIB. Em 2022, o superávit tinha ficado em 0,2%. Houve uma piora considerável no primeiro ano do terceiro mandato de Lula. A situação fiscal preocupa e certamente o ministro Fernando Haddad está totalmente ciente do problema, tanto que tem feito os maiores esforços para consertar a situação e, com dificuldades imensas, tem sido bem-sucedido.
De que forma?
No ano passado, a agenda dele teve três elementos muito importantes. Aliás, este sucesso dele explica, em parte, o motivo de o ano ter sido bom. Claro que o pouso suave da inflação norte-americana ajudou, mas a agenda do Haddad foi essencial. A agenda dele parte de um diagnóstico correto e tenta atacar o problema fiscal pela esquerda, priorizando aumento de carga tributária e não redução de gastos. O que é legítimo, aumento de carga tem implicações econômicas, mas é uma decisão de natureza política. A primeira medida dele foi a aprovação do arcabouço fiscal, que entrou no lugar do teto dos gastos. É um marco consistente no sentido de ter metas e governança com mecanismos de correção a eventuais desequilíbrios. Apesar de ser correto, é insuficiente. É insuficiente porque o ponto de partida é um déficit muito grande. Só a PEC da Transição adicionou quase R$ 150 bilhões em gastos permanentes. O novo marco não é suficiente para estabilizar a dívida pública de maneira razoável, por isso, ele partiu para uma série de medidas para tentar obstruir oportunidades de planejamento tributário e para explorar bases tributárias que não estavam sendo tributadas. Tem esse pacote e boa parte dele foi aprovado. Há, hoje, uma dúvida imensa sobre qual é a situação fiscal do país. Ninguém consegue avaliar com certeza qual será o impacto na receita de todas essas medidas. Vamos ter de aguardar. Trabalho com um déficit, para 2024, de 0,8% do PIB, portanto, acho que a meta será mudada. Creio que o ministro vai mudar a meta para um déficit de 0,5% e deve contingenciar uns R$ 30 bilhões. Se fizer isso, fica bem na foto, o mercado aceita bem. Elas, por si só, detonam medidas corretivas do próprio arcabouço, não gerando um grande rebuliço. Se ele revisa de zero para 1% de déficit, o impacto seria maior, com uma percepção maior de risco. A situação não está resolvida, o Lula pode chegar a 2026 com uma dívida pública entre 10 e 12 pontos percentuais acima do que ele herdou do Bolsonaro (72% do PIB). Podemos chegar a 84%.
Samuel Pessôa
Economista
"A primeira medida dele foi a aprovação do arcabouço fiscal, que entrou no lugar do teto dos gastos. É um marco consistente no sentido de ter metas e governança com mecanismos de correção a eventuais desequilíbrios. Apesar de ser correto, é insuficiente"
O senhor é um profundo conhecedor das nossas contas, onde é possível cortar?
Este é o problema. Eu, Fábio Giambiagi e Mansueto Almeida escrevemos, em 2006, um artigo dizendo que o Estado brasileiro não desperdiça recursos. Isto vale para hoje, há uma certa ingenuidade aí. O grosso do gasto do governo é com salário de servidores, aposentadoria dos servidores, aposentadoria dos trabalhadores da iniciativa privada, aposentadoria rural, benefício de prestação continuada e Bolsa Família. Tudo dinheiro que vai para as pessoas. Temos uma gestão muito ruim no gasto educacional, gastamos muito e o resultado é ruim, mas isso envolve mudanças legislativas, faltam instrumentos legais, foge um pouco do problema de gestão. É uma agenda de reforma administrativa... Não tem lugar fácil para cortar.
Então como vamos fazer?
(Risos) Eu acho que temos duas medidas, que são difíceis politicamente para o presidente Lula, mas que fazem todo o sentido do ponto de vista conceitual. Aliás, seguem a lógica do arcabouço fiscal proposto pelo próprio governo. A primeira é que temos critérios de vinculação de gastos com saúde e educação ligados às receitas com impostos. O arcabouço fiscal observa o crescimento do gasto total. Dois gastos muito relevantes, saúde e educação, estão fixados em outra base: a receita. Não pode, tem um problema aí, as regras precisam conversar. Além de tudo, vincular gasto e receita é ruim, as receitas variam muito e o gasto é mais estável, acaba gerando instabilidade. Mudar essas bases melhoraria a situação fiscal. A segunda medida diz respeito à vinculação do valor real do salário mínimo. A preocupação do Lula faz sentido, ele quer que o mínimo avance de acordo com os ganhos de produtividade generalizados da sociedade. Hoje, está vinculado ao crescimento econômico do país. O princípio está correto, mas a base escolhida está errada, está indexado ao crescimento absoluto. Creio que o mais adequado seja indexar ao PIB per capita, são coisas diferentes. Se corrige essas duas regras, torna o arcabouço intertemporalmente consistente e, mesmo sem reduzir gastos hoje, melhoraria muito a situação fiscal.
O senhor já escreveu várias vezes sobre a incapacidade brasileira de crescer e se desenvolver no longo prazo. Fizemos uma reforma tributária, tudo bem que ainda falta a regulamentação, mas foi feita. Como o senhor enxerga o horizonte pós-reforma?
Eu acho que a reforma tributária é a maior reforma institucional que o país faz desde o Plano Real (1994). Foi um sinal de enorme saúde da democracia brasileira. Quando aprovarmos a legislação complementar, que vai ser este ano, vai haver um ganho adicional de otimismo e queda de risco. Vamos começar a colher os frutos mais para o final da década, quando a reforma já estiver impactando. Quando esta medida estiver funcionando com mais força, no começo da próxima década, o ganho na taxa de crescimento da produtividade em excesso ao que haveria se não tivéssemos a reforma será de, pelo menos, 1 ponto percentual por ano ao longo de dez, quinze ou vinte anos...
É muita coisa! O Brasil patina em ganhos de produtividade desde os anos 80.
É mesmo muita coisa. Pelas minhas contas, o nosso ganho médio de produtividade, dos anos 80 para cá, foi de 0,4% ao ano. É, portanto, uma mudança qualitativa importante. Nosso sistema é doido, estamos em um verdadeiro manicômio, com a reforma tributária passaremos a um sistema tributária normal, deixaremos de ser absolutamente doidos. Claro que temos de acompanhar como a regulamentação da reforma irá tramitar, mas eu estou muito animado. Com isso, a questão fiscal passa a ser a grande barreira que impede o nosso crescimento de maneira sustentada.
Muito se fala que a transição energética e a conjuntura mundial, países pobres como Índia crescendo e demandando comida, são um prato cheio para o crescimento brasileiro. O senhor concorda?
Sim, estamos nos favorecendo. É uma situação nova, ainda mais para alguém como eu, com 61 anos, que viveu as crises dos anos 70 e 80. Temos 15% de nosso PIB em reservas internacionais e a nossa balança comercial é superavitária em algo perto de US$ 100 bilhões. Trata-se de algo estrutural, não vai mudar tão cedo. Estamos falando de meio trilhão de reais, isso dá 5% do PIB. É uma coisa cavalar, gigante, então, tudo isso são boas novas. Agora, importante dizer, ninguém vai bem porque a situação internacional é boa, o desenvolvimento é sempre construído internamente, com boas instituições e com as condições adequadas para o crescimento. Nós ganhamos o pré-sal lá atrás e produzimos a crise de 2015 e 2016 por causa dos nossos próprios erros. O mais importante é a formulação interna, o mundo pode ajudar ou atrapalhar, mas o importante é o que nós fazemos.
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