A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, definiu a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade. Nesta data, além de admitir que saúde e doença não são antagônicos, a instituição abrangeu as esferas biopsicossociais que envolvem os aspectos de saúde. Foram pontos muito positivos. Entretanto, com o envelhecimento da população, o aumento da prevalência de doenças crônicas e o estado pandêmico ao qual estamos inseridos permite o levantamento de questões sobre esta definição.
Após 75 anos desta definição da OMS, será que é coerente admitir que só há saúde se o bem-estar for um estado “completo”? A persistência enfática na plenitude da saúde tende a medicalizar uma população inteira, fazendo com que se submetam a intervenções caras – para o bolso e para a vida - e arriscadas. Muitas pessoas se veem dependentes de exames e medicamentos numa busca/fuga sem fim.
Em 75 anos, a natureza das doenças também mudou. Os desfechos de mortalidade mudaram, o acesso ao saneamento, os aspectos alimentares, a relação trabalho-lazer. Pessoas com doenças crônicas vivem cada vez mais e estas, que não se encontram em estado completo de bem-estar, podem ter saúde? Quando as declara como doentes permanentemente, essa definição minimiza o papel da capacidade do ser humano de lidar de forma autônoma com as constantes mudanças físicas, emocionais e sociais dos desafios da vida e ter bem-estar com uma doença crônica ou deficiência.
Uma pessoa que se confronta com um estresse, se for saudável, é capaz de ter uma resposta protetora, para reduzir os danos ao organismo e restaurar o equilíbrio, de forma adaptada. Se esta estratégia fisiológica de enfrentamento não for bem-sucedida, o dano permanece e se perpetua, o que pode finalmente resultar em doença. As doenças físicas começam assim.
Quando há saúde mental, costuma-se ter coerência, aumentando a compreensão, autogestão e o significado de uma situação difícil, como a que estamos passando em tempos de pandemia. Uma capacidade de adaptação e de gerenciar a si mesmo muitas vezes melhora o bem-estar (que não precisa ser completo) e pode resultar em uma boa interação entre mente e corpo. É possível encontrar-se em estado de adoecimento físico e ainda ter senso de coerência?
Num contexto de bem-estar social, as dimensões são infinitas e a participação inclui relações de trabalho, religião, lazer, voluntariado e até mesmo grupos e associações de uma doença específica. O paradoxo da deficiência por alguma doença vem da percepção de melhora da qualidade de vida quando a pessoa desenvolve habilidades sociais apesar da sua limitação e com isso é capaz de sentir bem-estar. O estado não é completo, mas é possível perceber saúde em cada interação social, ainda que adaptada.
Entender a saúde como a capacidade de adaptação e autogestão em face dos desafios sociais, físicos e emocionais parece mais coerente que a visão do bem-estar completo e ajuda a colocar como protagonista a pessoa. A pessoa que busca o equilíbrio apesar de viver com uma doença crônica, de vivenciar o envelhecimento, apesar de sentir os efeitos de uma pandemia.
É possível manter um nível de socialização ainda que com isolamento físico, ter boas escolhas alimentares, praticar alguma atividade física, conectar-se com a espiritualidade, cuidar e vigiar os pensamentos, praticar caridade, perdão e desapego em situações difíceis. É possível ver saúde na doença, ter saúde com doença, sem a necessidade que a morte os separe.
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