Fomos assistir a “Ainda estou aqui” no Shopping Vitória, onde não entrava havia uns dois anos, sabendo que muita gente não tinha conseguido lugar nas sessões no Shopping Jardins. Vendo metade das cadeiras vazias, imaginei que o tema não desperta interesse aos seus frequentadores habituais.
Gostei muito do filme. Por várias razões, a começar por tratar de tema relevantíssimo de maneira envolvente para quem viveu durante os chamados anos de chumbo, já distantes, que marcaram a vida de muita gente. Trata da história real sobre os impactos e os desdobramentos acontecidos após o desaparecimento de um homem de bem, marido querido, pai de prole animada, de amigos fraternos, profissional competente, um cidadão convicto sobre o que é certo e errado.
É um filme sobre valores humanos, sobre atitudes e determinação de uma companheira de vida, sobre o amor de mãe de muitos. Um filme que me tocou, ao me fazer lembrar do pai que perdi aos 14 anos, da minha querida mãe que criou exemplarmente 5 filhos, de colegas de turma que sofreram durante aquele tempo, de um colega de república que resolveu fugir pro Chile sem deixar vestígios, para nos proteger, e de um amigo então recente que foi preso num final de tarde, na saída da Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro.
Em casa, contei pra Rafael, meu filho, o que aconteceu no comecinho de 1971, com Peter Ho Peng, um colega de mestrado na COPPE/UFRJ. Gaúcho falante, que havia sido líder estudantil na UFRGS, estava animadíssimo anunciando que daria uma festinha, com churrasco e cerveja, para os novos amigos, eu incluído, no sábado seguinte.
A caminho do restaurante universitário, ele me mostrou, disfarçando, uma cena no estacionamento quase vazio que o deixou preocupado: dois homens dentro de um fusca, naquele meio dia de escaldante sol a pino, em pleno verão carioca.
Como de costume, às quatro e meia da tarde, embarcamos no ônibus contratado para trazer e levar de volta alunos e professores da Zona Sul do Rio. A bordo, as conversas foram interrompidas pela movimentação de homens fardados que, aos trancos, tiraram Peter do ônibus. Pelas janelas víamos militares armados e viaturas oficiais. O silêncio na volta foi produzido pelo estado de choque e de impotência de cada passageiro.
No dia seguinte soubemos que a direção da UFRJ havia pedido informações sobre o acontecido, mas nada foi esclarecido. Nunca mais tive qualquer notícia do meu amigo gaúcho, cujo nome nunca encontrei em listas de desaparecidos.
Enquanto contava essa história, Carol pegou o celular, digitou seu nome na busca e logo anunciou ter achado um vídeo com depoimento dele para o projeto “O Grito Ecoa”, da Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Depois de passar em revista cenas e emoções que guardo por mais de 50 anos, assisti a 60 minutos de histórias de incertezas e de muita determinação daquele homem nascido em Hong Kong que veio pro Brasil com dois anos de idade. Pouco antes de vir fazer o mestrado no Rio, Peter foi orador da turma de engenharia química de 1970, segundo ele sob olhar raivoso do reitor da UFRGS.
Ele conta que ficou preso por mais de 10 meses, que foi preso uma segunda vez, que sofreu torturas e que anularam seus documentos brasileiros, obrigando-o a buscar apoio da embaixada inglesa, que lhe forneceu passaporte do Reino Unido, possibilitando que fizesse pós-graduação nos USA e lá permanecesse até retornar ao Brasil nos anos da década 2010.
No vídeo, ele chora copiosamente, por mais de um minuto, ao contar que ao receber sua nova carteira de identidade em solenidade especial da Comissão da Anistia, ele voltava a ser um brasileiro, o que nunca deixara de ser. O seu caso, expressão crua e perversa de regimes autoritários, está narrado em detalhes, em livro sobre aqueles tempos.
Fiquei sabendo que Peter voltou a viver nos Estados Unidos faz anos. Pelo que vi, ele não é muito atuante na internet. Estou tentando achar quem possa me ajudar a falar com ele. Como o mundo dá voltas e os ventos são favoráveis, tenho certeza de que dará tudo certo.
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