É jornalista e escritora, com passagens pelos jornais A Gazeta e Folha de São Paulo e pelas revistas Bravo! e Vida Simples. Autora dos livros Todo Sentimento e Quase um Segundo, escreve aos domingos sobre assuntos ligados à diversidade, comunicação e cultura

Como o sonho, a crônica não acabou, pelo menos ainda

Numa coisa concordo com o autor que diz que a crônica se aproxima do fim: a ausência da crônica nos afasta dos acontecimentos mínimos, nos deixa na presunçosa companhia da ideia ou, pior ainda, na extravagante presença da polêmica

Publicado em 16/06/2024 às 02h00

Há 20 anos tenho me permitido teimar com o autor que diz que a crônica acabou, que pouco a pouco abandona o mundo, definha, incapaz de seduzir os algoritmos, esquecida entre páginas urgentes, novidades eufóricas e notícias ruidosas.

Talvez ele tenha razão a respeito dos algoritmos, aquela sequência de instruções matemáticas que influencia afetos, define o bombardeio de conteúdos na internet, impõe ignorâncias e escolhe por nós, até quando achamos o contrário.

Quanto à crônica, quero crer que não; que o autor errou ao dizer que o gênero se aproxima do fim, que seu tempo é outro, que há um descompasso de ritmos e que a crônica, devota da lentidão, não sobrevive às exigências da produtividade.

Prefiro defender o tombamento do mais imaterial dos gêneros, um fazer intocável como a panela de barro de Goiabeiras, o queijo de Minas, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o Círio de Nazaré e o frevo de Pernambuco, inscrita no livro de tombos e celebrada como as construções mais valiosas, livre de estragos e avarias.

Desta forma estariam a salvo o passarinho que não tem fábricas como o conde, mas sabe cantar e voar; a moça daquela noite em que chovia a bules de chá; a entrevistadora que se espanta quando a entrevistada diz que gosta de gente - não de toda gente, mas de gente que não se chateia à toa nem chateia a gente; Dindi e as agruras de certos dias.

Seriam guardados e valorizados para todo o sempre as mulheres que passam, os estudantes que passam, as comerciárias que passam, os malandros que passam e todos os outros que passam rumo à Praça Costa Pereira. Aquela deliciosa defesa por pratos sem cheiro verde [por favor] seria preservada, como também a aventura do garoto que não sabia o que era dormir – e o avô tentava explicar sobre quando a noite chegava, as pessoas vestiam pijama, olhavam a televisão e às vezes sonhavam.

Ipê rosa na Praça Costa Pereira, em Vitória
Ipê rosa na Praça Costa Pereira, em Vitória . Crédito: Fernando Madeira

Numa coisa concordo com o autor que diz que a crônica se aproxima do fim, sem desespero nem cólera nem alarde, na timidez que a caracteriza. Concordo que a ausência da crônica nos afasta dos acontecimentos mínimos, nos deixa na presunçosa companhia da ideia ou, pior ainda, na extravagante presença da polêmica.

Concordo com ele: sem a literatura mansa desprovida de ambições e ganâncias, os sonhadores e os distraídos estarão reféns dos extremos, sem liberdade e leveza, sem a melancolia vaga das palavras levemente infelizes.

A Gazeta integra o

Saiba mais
Literatura Vida Crônica

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.