Há 20 anos tenho me permitido teimar com o autor que diz que a crônica acabou, que pouco a pouco abandona o mundo, definha, incapaz de seduzir os algoritmos, esquecida entre páginas urgentes, novidades eufóricas e notícias ruidosas.
Talvez ele tenha razão a respeito dos algoritmos, aquela sequência de instruções matemáticas que influencia afetos, define o bombardeio de conteúdos na internet, impõe ignorâncias e escolhe por nós, até quando achamos o contrário.
Quanto à crônica, quero crer que não; que o autor errou ao dizer que o gênero se aproxima do fim, que seu tempo é outro, que há um descompasso de ritmos e que a crônica, devota da lentidão, não sobrevive às exigências da produtividade.
Prefiro defender o tombamento do mais imaterial dos gêneros, um fazer intocável como a panela de barro de Goiabeiras, o queijo de Minas, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o Círio de Nazaré e o frevo de Pernambuco, inscrita no livro de tombos e celebrada como as construções mais valiosas, livre de estragos e avarias.
Desta forma estariam a salvo o passarinho que não tem fábricas como o conde, mas sabe cantar e voar; a moça daquela noite em que chovia a bules de chá; a entrevistadora que se espanta quando a entrevistada diz que gosta de gente - não de toda gente, mas de gente que não se chateia à toa nem chateia a gente; Dindi e as agruras de certos dias.
Seriam guardados e valorizados para todo o sempre as mulheres que passam, os estudantes que passam, as comerciárias que passam, os malandros que passam e todos os outros que passam rumo à Praça Costa Pereira. Aquela deliciosa defesa por pratos sem cheiro verde [por favor] seria preservada, como também a aventura do garoto que não sabia o que era dormir – e o avô tentava explicar sobre quando a noite chegava, as pessoas vestiam pijama, olhavam a televisão e às vezes sonhavam.
![Ipê rosa na Praça Costa Pereira, em Vitória](https://midias.agazeta.com.br/2022/06/06/ipe-rosa-na-praca-costa-pereira-em-vitoria--775375-article.jpg)
Numa coisa concordo com o autor que diz que a crônica se aproxima do fim, sem desespero nem cólera nem alarde, na timidez que a caracteriza. Concordo que a ausência da crônica nos afasta dos acontecimentos mínimos, nos deixa na presunçosa companhia da ideia ou, pior ainda, na extravagante presença da polêmica.
Concordo com ele: sem a literatura mansa desprovida de ambições e ganâncias, os sonhadores e os distraídos estarão reféns dos extremos, sem liberdade e leveza, sem a melancolia vaga das palavras levemente infelizes.
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