Naquela noite em que Sérgio Blank e eu conversávamos sobre as razões que moviam nossa escrita, ele se deteve na afirmação de que, na maior parte das vezes, eu me sentia influenciada mais pelas canções do que pela própria literatura.
Contei o que alguns na plateia sabiam há mais tempo: que cresci com a agulha do toca-discos chiando na sala enquanto eu brincava, no embalo de melodias que plantaram em mim um amor incondicional pelas suaves e sagradas canções deste país.
Eu tinha pouca ou nenhuma ideia do que viria pela frente, dos projetos, das perspectivas, das perdas e dos amores, das palavras, dos sucessos e dos desafetos. Desconhecia a matemática das escolhas, a química das expectativas desfeitas e a poesia escondida no tempo, e toda a tragédia do mundo, nos meus sete anos de idade, estava inteiramente concentrada nas terríveis sombras do Brejo da Cruz.
O tempo voou e, nos dias seguintes à partida de Antônio Cícero, neste estranho e ligeiramente tumultuado outubro, revisitei as memórias daquela noite a respeito das razões da escrita, do encontro entre letra e música, dos sons de cada palavra, de uma influência sólida e constante, mas leve, quase sutil, do que ouço no que escrevo.
Cícero, afinal, foi um dos poetas mais musicais de todos, um cara que viu a potência da poesia na canção, entrelaçando a música e a literatura com gentileza e aconchego.
Escritor, filósofo e letrista, ele equilibrou como poucos o popular e o erudito, o afeto e a política, a filosofia e o simples da vida que escolheu interromper para barrar o avanço da terrível doença de Alzheimer. Cícero, ao que parece, viveu e morreu o que escrevia. Quando deixou de lembrar das pessoas e das coisas, decidiu abreviar o que viria.
Suas composições, como os poemas, ficaram e ficarão. É dele a estrofe que esconde uma das minhas combinações favoritas nos discos como na vida: música, letra e dança. São dele os versos que lembram da alegria de tomar o mundo feito Coca-Cola, da tolice de viver a vida sem aventura, do fato de que os momentos felizes não estão escondidos nem no passado nem no futuro, do que representa abrir os braços e fazer um país.
Na voz cada vez mais rouca da irmã Marina Lima, Antônio Cícero nos fez acreditar que nada de mal nos alcança.
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