É jornalista e escritora, com passagens pelos jornais A Gazeta e Folha de São Paulo e pelas revistas Bravo! e Vida Simples. Autora dos livros Todo Sentimento e Quase um Segundo, escreve aos domingos sobre assuntos ligados à diversidade, comunicação e cultura

Quatro anos depois, voltamos a criar novidades, bichos e expectativas

O mundo segue seu curso, mais gente descobre Carmélia Maria de Souza [viva!] e agora dizem que as mudanças climáticas farão uma a cada quatro pontes desabar

Publicado em 08/09/2024 às 03h00

Vira e mexe, em noites de poucas ideias [era o caso], revisito os escritos da mesma época do ano, só que em outros anos. Gosto de lembrar do texto, do contexto, dos temas em torno dos quais a crônica gravitava, os sentimentos que ela sugeria, as questões que andavam à espreita. Gosto de matar as saudades que de vez em quando se instalam, comparar passado e presente, criar rotas a partir de caminhos anteriores.

Numa dessas visitas, encontrei um texto feito de questões sobre objetos antigos e as histórias que eles contavam. Era pandemia, o mesmo mês de agora, só que com 1,5 milhão de mortos a mais; e eu tinha a impressão de que nossos elos com as coisas e as memórias estavam mais fortes do que nunca, porque a gente passava mais tempo alimentando e compartilhando lembranças do que produzindo novidades.

Tínhamos aposentado um fogão depois de 30 anos de uso e eu pensava quantos amores e dissabores se escondiam ali e quantos ainda viriam no cinco-bocas de inox que instalamos no lugar. Pensava nas perdas e ganhos que passaram pelas prateleiras da cristaleira art nouveau ao lado do velho piano de raízes alemãs e no piano em si, suas melodias, saudades, pausas e staccatos ao longo de décadas de uso ou abandono.

Pensava no banquinho de couro que minha avó usava para esticar os pés, depois meu pai e então era a minha vez. Lembrei deles estarem na sala da família desde que eu me entendia por gente e de tudo que cercava aquela memória: um telefone de disco, a porta de vitrais coloridos, a textura de um bem cuidado jardim de samambaias e avencas, o cheiro dos malfufos que vinha da cozinha, a casa que não existe mais.

Quatro anos depois, o cinco-bocas de inox, a cristaleira art nouveau, o velho piano de raízes alemãs e o banquinho de couro que minha avó usava para esticar os pés, depois meu pai e então era a minha vez seguem firmes e mais ou menos fortes. A despeito do que pesa, voltamos a produzir novidades e memórias novas, inventar modas mais ou menos bem-sucedidas, criar bichos e expectativas, alternar alegria e desapontamentos.

O mundo segue seu curso, mais gente descobre Carmélia Maria de Souza [viva!], uma denúncia de assédio nos entristece e desaponta, uma cidade esquecida começa a ser cuidada conforme as eleições se aproximam. Um bocado de água passou, passa e passará embaixo da ponte e agora dizem que, a certa altura dos acontecimentos, as mudanças climáticas farão uma a cada quatro delas desabar até 2050.

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