Aquiles Reis é músico e vocalista do MPB4. Nascido em Niterói, em 1948, viu a música correr em suas veias em 1965, quando o grupo se profissionalizou. Há quinze anos Aquiles passou a escrever sobre música em jornais. Neste mesmo período, lançou o livro "O Gogó de Aquiles" (Editora A Girafa)

"Alegria" é ouro em pó musical de Breno Ruiz e Roberto Leão

Disco possui repertório de “sofredores”, que brilharam ao longo dos tempos na música popular brasileira

Publicado em 04/08/2020 às 15h08
Atualizado em 04/08/2020 às 15h08
Os músicos Breno Ruiz e Roberto Leão
Os músicos Breno Ruiz e Roberto Leão. Crédito: Reprodução/Youtube

Foi quando ouvi os arquivos das dez músicas que recebi pela internet que me pareceu ter aberto a tampa de um baú de tesouros. Ouro em pó pululava pelas beiradas da arca. Eram pequenas lascas, cada uma com brilho próprio. Todas carregadas de histórias.

Na caravela que as transportava, foram empilhadas à meia nau, com a marujada refestelada sobre o que nem davam tento do valor.

A maleta trazia incrustrada uma palavra, “Alegria”. Traçada à mão, em sua superfície maior, seu conteúdo refletia um brilho ainda desconhecido, mas que logo a marujada tratou de enxergar como bom augúrio vindo de um raio do sol – supersticiosos, protegiam-na como a um filho.

Apenas o capitão e o contramestre sabiam o valor do que transportavam. A eles fora dada a missão de fazer com que o baú chegasse em terra firme. Apenas lá ele seria aberto e tocado por mãos fecundas, e o seu conteúdo levado a toda gente.

Esta história é uma alegoria de "Alegria", CD independente lançado pelo pianista brasileiro Breno Ruiz (se você ainda não o ouviu cantar e tocar, não perca mais tempo, ouça-o) e pelo ótimo cantor português Roberto Leão, radicado no Brasil. O álbum já está à venda em todas as plataformas digitais.

Disco
Disco "Alegria", de Breno Ruiz e Roberto Leão. Crédito: Divulgação

De cara, fiquei encantado com o seu tema, algo como “A melancolia na música brasileira dos últimos 100 anos”. Belo é o contraste entre a intenção e o resultado do trabalho, um afazer afetuoso, no qual piano e voz mostram um repertório de “deslumbrâncias” (hoje se diria “sofrências”). Tratando a fossa sob a ótica dos compositores, o repertório ajuntou “sofredores” contumazes, eventuais ou frequentes, que brilharam ao longo dos tempos na música popular brasileira. Temos então a lista abaixo.

“Viola de Bem Querer” (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro); “Por Causa de Você” (Dolores Duran e Tom Jobim); “Delicadeza” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro); “O Que Tinha de Ser” (Tom Jobim e Vinicius de Moraes); “Roseira” (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro); “Tati, a Garota” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro); “Desprezo” (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro); “Cristais de Poesia” (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro); “De Onde Vens” (Dori Caymmi e Nelson Motta); e “Valsa da Dor” (Heitor Villa-Lobos).

Como se vê, Paulinho Pinheiro, com alguns de seus parceiros, foi o homenageado na seleção das canções a gravar.

Mas voltemos ao capitão e ao contramestre: a empatia é o dom dessa dupla amorosa, a serviço da criação de momentos (talvez) inimagináveis pelos compositores, acima nomeados. Por mais que outros intérpretes tenham aberto os pulsos ao cantá-las, Ruiz e Leão elevaram-nas a momentos de virtuosos predicado e sedução. Ao ouvi-los, fica fácil entender o porquê do fado e do samba-canção serem tão irmãos quanto o são brasileiros e portugueses.

Assim, ao se debruçarem sobre o sentimento ecumênico da melancolia, Breno Ruiz e Roberto Leão agregaram não só belezas infinitas como um novo ponto na convergência musical luso-brasileira.

Alegria é disco feito para sonhar.

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