Eis que me deparei com a mulher e me pus a ouvi-la. Eis que senti a música e notei sua emoção. Eis que lágrimas brotaram. Eis a força das palavras da mulher, refletidas em versos que relembram um tempo solidário, tempo que se foi e deu lugar a uma falsidade facinorosa.
A mulher é a compositora e cantora Gabi Buarque. Tudo o mais que ouvi, senti e disse no parágrafo anterior está em seu CD Mar de Gente (independente).
São treze músicas extremamente bem elaboradas. Ecléticas, deixam sobressair ritmos brasileiros – sambas, maxixes e canções – ao mesmo tempo em que remetem ao blues e ao dixieland.
Por falar em “remeter”, algumas presenças afetivas ajudam a consolidar o caráter peculiar do disco de Gabi Buarque. Por exemplo, as músicas que sintonizam uma levada que muito lembram ora Zé Rodrix, em “É” (Gabi Buarque e Socorro Lira), ora Zé Ramalho em “Quantos” (Gabi Buarque): “(...) Contam os que viveram/ E viram tudo acontecer/ E quem jamais ousaria desdizer?/ Mas o mundo gira e volta tudo outra vez/ De que vale a morte dos que lutam/ Se o passado não diz nada pra você?”.
Os sambas e maxixes, por exemplo, convidam-nos a relembrar Clara Nunes, como nos versos de “Morena do Mar” (Gabi Buarque e Silvia Duffrayer): “(...) Ô morena do mar, Odoiá!/ Ô morena do mar, Odoiá!/ Ô morena do mar/ Mamãe rainha Yemanjá!”.
Da mesma maneira, versos contestatórios nos trazem à mente a politização de letras como as de um Sérgio Ricardo, pós bossa-nova, ou de um Geraldo Vandré, no enfrentamento à ditadura. Ou ainda na quadra do escritor Eduardo Marinho: “(...) No dia em que o morro não descer/ Aí é que o Brasil vai ver/ A importância e a força do seu povo”. Versos estes escolhidos por Gabi como prólogo para a sua música “Penha”.
O universo feminino é regiamente privilegiado no CD, exceção feita a instrumentistas, ao arranjador (Luis Barcelos), a Roberto Didio (parceiro de Gabi em “Samba Rezadeiro”) e a Fernando Pessoa, com o poema “O Amor” interpretado na voz de Gabi.
Assim, as compositoras Socorro Lira, Silvia Duffrayer e Angélica Duarte, e as cantoras Áurea Martins, Mariana Baltar, Nina Wirtti, Thais Macedo – com belas participações especiais – e Maria Sereno, com o poema “Pulso Aberto” recitado por Gabi, revelam que as mulheres pontificaram no cerne do álbum.
A autenticidade de todo esse “mar de gente” lembrou-me o auto de Natal pernambucano Morte e Vida Severina (João Cabral de Melo Neto): o CD tem sabor de “caderno novo, quando a gente o principia; [ele] infecciona a miséria, com vida nova e sadia, com oásis o deserto, com ventos a calmaria”.
Eis que a música se fez viva; palavras deram o prumo para reaver a liberdade ameaçada. Pois a democracia, pela qual tanto lutamos, hoje não passa de um circo onde o palhaço oficial e seus cachorrinhos submissos nos fazem ranger os dentes.
Eis Gabi Buarque, a mulher que bem criou e cantou lembranças musicais de tempos tão difíceis quanto os de hoje. Tempos idos, mas ainda vivos na memória.
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