De tempos em tempos, a brutalidade do mundo pesa mais no coração da gente. Há que se buscar um escape dela. A via aberta pela arte alivia. Com mais de uma década de atraso, resolvi maratonar Game of Thrones, com a família. Confesso que já havia tentado assistir a série algumas vezes, mas a história não colava em mim. Desta vez, foi diferente, minha curiosidade pela estrutura psiquica das personagens, de uma trama sangrenta, trouxe a liga que faltava. Arya Stark é encantadora.
Levei uma flechada bem no peito enquanto acompanhava a saga da filha caçula de Ned Stark, um honrado, porém ingênuo lorde. Um escravo da verdade, ao ponto de colocar-se em risco e a toda a sua família.
A série, baseada em uma coletânea escrita por George RR Martin, é ambientada em um continente imaginário, na Idade Média. Famílias poderosas estão em constante disputa pelo poder, em um jogo onde quase tudo vale. Na arena, muito sangue, relacões incestuosas, torturas, calúnias, traições, combates, intrigas, sexo, magia, frieza, ambição e dragões, os únicos que são sempre surpresa.
Arya Stark, ao contrário da irmã, Sansa, era mais amiga das espadas do que dos bordados. Aparece na série como uma adolescente indomável e de caráter firme. Foge aos padrões femininos da época. Sem dar spoiler, embora seja uma série antiga, a garota passa uma juventude de perrengues, mas não desiste do aprendizado.
Por todas as razões possíveis, Arya tem como grande propósito a vingança. Embora seu bom coração seja denunciado ao obrigá-la a repetir, toda noite, o nome dos seus alvos. Um esforço que se ela não o fizesse, certamente os esqueceria. Como esquecem dos maus os bons. Se vivesse nos dias de hoje, devidamente analisada, Arya entenderia que mais dói um esquecimento que um estrangulamento, mas falo aqui da Idade Média, antes de Freud.
A ridicularização dos bons diante da maldade não me parece temporalmente distante. As personagens de GoT, como os fãs chamam a série, embora demasiadamente explícitas, são tão atuais que poderiam ser adaptadas para o século 21.
Talvez a adaptação exigisse o acréscimo de uma personagem mais típica dos nossos dias, que retratasse a dissimulação dos maus, travestidos de bonzinhos. Uma personagem que mostrasse a maldade escondida na simpatia, no sorriso constante, na quase servidão alegre, no bom mocismo treinado para manipular e causar danos sem deixar rastros.
No covarde, que age sob disfarce, ano após ano, engrossando um caldo em fogo baixo para servir um prato que os ingênuos lambem os beiços comendo a própria carne. Arya serviu torta, sem esse ritual da espera.
É certo que a pequena Arya aprendeu muito com as porradas da vida, mas até o momento – final da sexta temporada – ela ainda não aprendeu algo que talvez aprenda: a resposta para um esfolamento da alma, imposto pela crueldade, é o desprezo. O esquecimento é a maior vingança. A vida é bruta, mas é ciclíca. A roda da verdade gira, às vezes lentamente, mas gira.
Como escreveu o poeta franco-argentino Júlio Cortázar, só há um meio de matar os monstros: aceitá-los.
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