É jornalista e escritora, escreve quinzenalmente a coluna Sextas Crônicas

As memórias de uma mulher emocionada

Reviver memórias gentis é como acariciar a alma. É uma viagem boa lembrar do frio na barriga do primeiro beijo ou da timidez na primeira transa

Vitória
Publicado em 08/03/2024 às 01h30

Ser uma mulher emocionada me deu de presente algumas cicatrizes e centenas de histórias para contar. Se eu fosse escrever autoficção - talvez escreva mesmo - teria bons assuntos para mais de uma dezena de livros. Sou detalhista e seletiva nas minhas lembranças, só consigo lembrar do que me emocionou profundamente e, geralmente, positivamente. Para todo o resto tenho péssima memória.

Sempre estudei para provas escolares na noite anterior, porque sabia que em 24h grande parte do conteúdo haveria desaparecido. Só manteria na memória aquilo que o meu coração havia registrado. Não consigo lembrar citações, fórmulas e tabelas que fui obrigada a decorar, mas consigo sentir a dor refletida nos olhos de Bertoleza, personagem de "O Cortiço", livro de Aluízio Azevedo, como se o tivesse lido ontem.

Gosto de reviver alegrias. Como a que eu senti na chegada da primeira menstruação. Pode parecer estranho, mas sempre adorei menstruar. A palavra empoderamento ainda não era comum como é hoje, mas o sentimento era esse: de crescer em si. Quis logo começar a usar sapato de salto para alinhar-me fisicamente com o meu novo tamanho interno. Diria que foi uma experiência de expansão da consciência.

Saber, com o próprio corpo, que a mulher sangra todo mês e não morre, nos torna um “bicho esquisito”, como diria Rita Lee e, por isso mesmo, talvez menos óbvias, menos rastreáveis, mais enigmáticas e complexas. Quem sabe essas características sejam prenúncio de um futuro melhor?

Amo visitar minhas memórias, as antigas e as recentes, as melhores, mesmo algumas não tão alegres, mas que possam me ajudar na melhor compreensão da minha leitura da vida. Porque tudo é mesmo sobre a história contada por você, para você.

Reviver memórias gentis é como acariciar a alma. É uma viagem boa lembrar do frio na barriga do primeiro beijo ou da timidez na primeira transa. Jamais esquecerei que, depois, lavamos os lençóis juntos, em uma cumplicidade delicada.

Sonho
Reviver memórias gentis é como acariciar a alma. Crédito: Pixabay

Detalhes que emocionam são perenes. Em uma sociedade patriarcal, onde o feminicídio bate recordes, conseguir reviver pequenas memórias de alegrias, proporcionadas por homens especiais, bons parceiros, bons amigos, que conseguem deixar a mulher confortável até na sua máxima vulnerabilidade do feminino, enche o coração esperança.

Saudações, às emocionadas, desejo uma vida que valha a pena recordar.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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