Era menina quando o Rio Doce subiu e não trouxe o mesmo aguaceiro que de tempos em tempos acometia as cidades do vale. A água chegou sem aviso, em poucas horas estávamos todos no meio dela. Lembro do instante em que meu coração partiu do meu peito e foi morar na boca.
Em uma catástrofe, transbordam lágrimas, palavras quase não saem, pouco se ouve além das batidas descompassadas na garganta, e tudo o que se vê está embaçado. A visão turva talvez seja uma providência divina para filtrar as imagens duras demais para olhos infantis.
O cenário mudou abruptamente. Em um dia, eram apenas poças esparsas nas ruas com crianças barulhentas e enlameadas, sob a condescendência cúmplice de mães sábias. E, no outro, sussurros, lágrimas e dor.
A grande onda de água barrenta veio antes lambendo, depois engolindo rua, canteiro, calçada, jardim, garagem, varanda e, com um silêncio inegociável, engoliu móvel por móvel, quarto por quarto. No quintal, o pé de carambola florido perdeu o propósito, a mangueira pareceu recolher-se entre suas folhas, nenhum fruto à mostra; na ventania, a castanheira fez uma despedida desajeitada.
Sem convite, sem aviso, como convém àqueles que furtam, a água levou embora todas as minhas preciosidades: a saia plissada do uniforme de escola, o vestido de festa, as bonecas, as pulseirinhas com o nome gravado, os livros e cadernos com letras desenhadas na capa e nomes feitos na rotuladora e, finalmente, as minhas fotos, todas elas. Nunca mais os registros de infância. Nunca mais.
Todas as horas e dias que se sucederam fazem parte de uma história de pavor e sorte, de raiva e resignação, de fragilidade e amadurecimento. De grandes perdas e resgate da esperança.
Traumas são fonte do que quisermos, neles pode estar a chance de atravessar nossas sombras e dores. Mesmo o barro fétido pode forjar um humano melhor.
O que pode ser mais traumático para um país, após 700 mil mortos pela Covid, que enfrentar a devastação de um estado por um desastre climático com espírito de desunião?
São mais de 2 milhões de pessoas afetadas. Mais de 500 mil desalojados, vivendo em abrigos, em condições precárias, enfrentando, inclusive, o drama adicional do abuso de crianças e mulheres. Quem, neste momento, não estiver profundamente tocado por essa tragédia também precisa de ajuda. Evitar os próprios traumas ou de compadecer-se dos alheios pode ser um sinal de abalo na saúde mental.
A apatia e o desdém diante das dores alheias pode ser, por um ponto de vista mais amoroso, um pedido de socorro de alguém que está perdendo a humanidade. Não é fácil mesmo ver a Terra ser vilipendiada, encarar uma sucessão de doenças e tragédias, em plena era da Inteligência Artificial, e aceitar implicar-se no lado mais sombrio do humano. Sulear-se é uma resposta ao desnorteio.
Mas é isto: fazemos parte, para ajudar ou para atrapalhar. Lembrando a escritora gaúcha Lya Luft, vou desalojar a senhora desilusão, porque “a gente vai à luta e inventa um novo sonho, uma esperança, mesmo recauchutada: vale tudo menos chorar tempo demais. Pois sempre há coisas boas para pensar. Algumas se realizam. Criança sabe disso”. Dentro do meu trauma, eu soube.
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