É jornalista e escritora, escreve quinzenalmente a coluna Sextas Crônicas

Ver uma enchente é muito diferente de viver uma enchente

A água chegou sem aviso, em poucas horas estávamos todos no meio dela. Lembro do instante em que meu coração partiu do meu peito e foi morar na boca

Vitória
Publicado em 17/05/2024 às 01h30

Era menina quando o Rio Doce subiu e não trouxe o mesmo aguaceiro que de tempos em tempos acometia as cidades do vale. A água chegou sem aviso, em poucas horas estávamos todos no meio dela. Lembro do instante em que meu coração partiu do meu peito e foi morar na boca.

Em uma catástrofe, transbordam lágrimas, palavras quase não saem, pouco se ouve além das batidas descompassadas na garganta, e tudo o que se vê está embaçado. A visão turva talvez seja uma providência divina para filtrar as imagens duras demais para olhos infantis.

O cenário mudou abruptamente. Em um dia, eram apenas poças esparsas nas ruas com crianças barulhentas e enlameadas, sob a condescendência cúmplice de mães sábias. E, no outro, sussurros, lágrimas e dor.

A grande onda de água barrenta veio antes lambendo, depois engolindo rua, canteiro, calçada, jardim, garagem, varanda e, com um silêncio inegociável, engoliu móvel por móvel, quarto por quarto. No quintal, o pé de carambola florido perdeu o propósito, a mangueira pareceu recolher-se entre suas folhas, nenhum fruto à mostra; na ventania, a castanheira fez uma despedida desajeitada.

Sem convite, sem aviso, como convém àqueles que furtam, a água levou embora todas as minhas preciosidades: a saia plissada do uniforme de escola, o vestido de festa, as bonecas, as pulseirinhas com o nome gravado, os livros e cadernos com letras desenhadas na capa e nomes feitos na rotuladora e, finalmente, as minhas fotos, todas elas. Nunca mais os registros de infância. Nunca mais.

Todas as horas e dias que se sucederam fazem parte de uma história de pavor e sorte, de raiva e resignação, de fragilidade e amadurecimento. De grandes perdas e resgate da esperança.

Traumas são fonte do que quisermos, neles pode estar a chance de atravessar nossas sombras e dores. Mesmo o barro fétido pode forjar um humano melhor.

Abrigo localizado no Grêmio Náutico União na Sede Moinhos de Vento, em Porto Alegre
Abrigo localizado no Grêmio Náutico União na Sede Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Crédito: Jurgen Mayrhofer/ Divulgação

São mais de 2 milhões de pessoas afetadas. Mais de 500 mil desalojados, vivendo em abrigos, em condições precárias, enfrentando, inclusive, o drama adicional do abuso de crianças e mulheres. Quem, neste momento, não estiver profundamente tocado por essa tragédia também precisa de ajuda. Evitar os próprios traumas ou de compadecer-se dos alheios pode ser um sinal de abalo na saúde mental.

A apatia e o desdém diante das dores alheias pode ser, por um ponto de vista mais amoroso, um pedido de socorro de alguém que está perdendo a humanidade. Não é fácil mesmo ver a Terra ser vilipendiada, encarar uma sucessão de doenças e tragédias, em plena era da Inteligência Artificial, e aceitar implicar-se no lado mais sombrio do humano. Sulear-se é uma resposta ao desnorteio.

Mas é isto: fazemos parte, para ajudar ou para atrapalhar. Lembrando a escritora gaúcha Lya Luft, vou desalojar a senhora desilusão, porque “a gente vai à luta e inventa um novo sonho, uma esperança, mesmo recauchutada: vale tudo menos chorar tempo demais. Pois sempre há coisas boas para pensar. Algumas se realizam. Criança sabe disso”. Dentro do meu trauma, eu soube.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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