Na semana passada assistimos chocadas às cenas de uma audiência em que uma jovem mulher denunciava um homem por estupro. Eu confesso que não assisti ao vídeo. Li uma ou outra informação sobre o caso, vi centenas de frases postadas nas redes sociais. Me perdoem a total falta de possibilidade de inteirar-me sobre o assunto, como deveria ter feito, para poder construir uma opinião sobre o caso. Lamento, mas não a tenho.
Mas um elemento ficou registrado na minha cabeça, durante toda a semana. E é sobre ele que quero escrever, hoje. Na imagem que tive acesso havia uma mulher e 3 homens. Para mim isso foi o suficiente. A primeira palavra que atravessou a minha mente foi: vulnerabilidade. E é sobre isso que quero lançar luz, hoje.
A vulnerabilidade não é um privilégio das mulheres e das meninas. Todos os seres humanos são vulneráveis. Essa é uma das características da condição humana, que mais me faz refletir. Nascemos vulneráveis, nos mais diversos sentidos. É necessário que um outro sujeito humano nos dê sentido e traduza o nosso choro. Acolha nossa fome, nosso frio e nossa imaturidade. Somos vulneráveis na infância, na adolescência, na vida adulta e na velhice. Podemos estar vulneráveis por ser de uma classe social menos favorecida. Tropeçamos em nossas vulnerabilidades cotidianamente.
Mas dentro das nossas vulnerabilidades, a que mais me assombra, enquanto psicanalista, é a dificuldade de acessar a nossa sexualidade e vivê-la de maneira plena e segura. Sexualidade aqui não é o ato sexual apenas, mas a nossa forma de sermos e agirmos no mundo, individualmente e em relação com os outros. Todos os dias crianças e jovens são desrespeitadas no manejo de suas sexualidades. Primeiro pela família, que nega informação respeitosa acerca dos usos dos corpos, segundo pela sociedade – aqui lê-se igreja, escola e outros dispositivos sociais que, de maneira hipócrita, conduzem as políticas a produzirem pessoas cada vez mais ignorantes de seus direitos, deveres e desejos.
Nos últimos anos, movimentos como o “Não é Não” e tantos outros trouxeram luz à voz das mulheres e seus desconfortos em viver na sociedade. Por não terem a tranquilidade de ir e vir dos espaços coletivos, por terem seus corpos sempre lançados ao exame do outro sexo.
Mas - pasmem! - as violações não acontecem apenas entre os gêneros diferentes. No restrito do consultório é possível recolher uma infinidade de violações cometidas por pessoas do mesmo gênero, em relações muito ou tão desiguais de poder. Para muito além do sexo que se porta e do lugar que esse ocupa no mundo, é necessário e urgente olharmos uns aos outros como sujeitos e não como objetos de satisfação, fetiche - apenas. É uma pena que no mundo que vivemos com tanta tecnologia ainda tenhamos situações que certamente vexariam os Neanderthais.
Há alguns anos recortei uma passagem de um livro, e essa semana me permiti voltar à reflexão. Nele, o autor, Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, estudioso das relações humanas e parentais, assinala que: “se não houver um verdadeiro reconhecimento do papel da mãe, então permanecerá em nós um vago medo da dependência".
Evoco o cuidado materno para falar sobre vulnerabilidade, pois, dentre os sujeitos, a mulher que se torna mãe é a mais vulnerável. E sua vulnerabilidade quando não acolhida, infelizmente, perpetua na nossa cultura o medo de sermos dominados, segundo o autor. Essa questão impacta principalmente os homens, os mais vulneráveis na atualidade com relação aos lugares que as mulheres estão ocupando e conquistando. É o que evidenciam os alarmantes números de violências, das mais diversas, contra as mulheres. Precisamos, enquanto sujeitos, reconhecer nossa dependência originária, assim como é preciso sermos gratas e gratos àqueles que nos acolheram e cuidaram de nossa vulnerabilidade.
Quando vejo uma cena em que uma mulher, sozinha, precisa se fazer ouvir por homens, mais uma vez isso ativa o quanto as relações entre os sujeitos e nossa cultura são desiguais. Eu gostaria de assinalar que o contraponto da vulnerabilidade é a coragem e a certeza de si, onde uma moça encontra-se sozinha, buscando reparação para algo que jamais deveria ter vivenciado.
Trazer ao público uma violação é transformar a vulnerabilidade em força. E ao falar e contar as mais difíceis histórias que nos constituem - todos nós, seres humanos - podemos, sim, garantir nossos lugares enquanto sujeito de autonomia. No caso das mulheres mais ainda, numa cultura que insiste em objetificar, desconsiderar, calar e reprimir.
Bianca Martins é psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, Mestre em Saúde Coletiva e diretora da Clínica Infans.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.