Pergunta: "Os números de crianças infectadas pela Covid-19 aumentou nos últimos tempos. Como devemos lidar com as crianças em situação de internação?", Laura
Toda criança deveria ser encarada como um bem público. No nosso país existem leis que garantem os acessos aos direitos universais das crianças que são: a saúde, a educação, a proteção, a dignidade e a viver em família e em comunidade.
Embora as crianças devam ser protegidas por todas as instâncias sociais, infelizmente elas não são consideradas como deveriam ser. A começar pelos aportes financeiros para garantir seu bem-estar integral que é determinado por lei. Mas pasmem, os recursos financeiros destinados à infância em nosso país são muito pequenos. Principalmente para a primeiríssima infância. Sem contar que o dinheiro investido é mal administrado ou desviado de sua função.
Mas você me pergunta como lidar com as crianças em situação de hospitalização. Não há uma única forma, e se você está procurando uma receita que dê conta de todas as situações eu sou obrigada a frustrá-la. Diante de cada situação de afastamento da criança da convivência familiar, por motivo de adoecimento o que devemos levar em consideração é a necessidade individual.
Qual a idade da criança? Ela possui capacidade de entendimento? Ela foi informada sobre os procedimentos que irá realizar? O que mais me espanta nessas situações é a infantil ideia dos adultos em minimizar absolutamente toda a situação de hospitalização da criança. Não lhe reportam seu estado, ocultam procedimentos. Ou seja, deixam as crianças num voo cego.
DÚVIDA
Todos os dias, a minha caixa no mensagem do Instagram se enche de perguntas de pais sobre como não traumatizar seus filhos. Eu penso que a pergunta é equivocada. Estão os pais tão preocupados em evitar “os traumas” que não se ocupam de efetivamente auxiliar a criança na ampliação de suas autonomias, ou seja, nos modos de encarar a vida como ela é. Repleta de impossibilidades, de eventos que não controlamos, de medos e angústias.
Traumática é toda situação que não conseguimos elaborar pois nos faltam ferramentas racionais e emocionais para entendê-la. É toda situação em que não é possível atribuir um sentido. Uma situação traumática será aquela em que eu não consiga perceber que compreendi e a elaborei psiquicamente. Uma criança que é levada a uma cirurgia, sem que os pais tenham conversado sobre a sua importância e necessidade, a informando que aquela medida é para seu bem-estar, compartilhando com a ela a “decisão” e garantindo que será bem cuidada e protegida todo o tempo, tendo a oportunidade de falar o que pensa e como se sente tende a ser um evento traumático.
Para mim, as crianças são seres humanos incríveis. Todas as vezes que tenho a oportunidade de estar com uma eu mais aprendo do que ensino. São extremamente corajosas, tolerantes e empáticas.
Há alguns anos eu tive a experiência de acompanhar uma família cuja criança precisaria passar por um procedimento que definiria sua sobrevivência. Seus pais, extremamente angustiados tinham muitas dúvidas sobre o quanto deveriam informar à criança, um menino de 6 anos.
Não foi preciso que os adultos dissessem nada. Em sessão com a família a criança reportou exatamente tudo o que estava acontecendo, para o choque dos pais que haviam me garantido que a criança não sabia. Foi lindo ver o quanto a criança, em sua sabedoria acolheu as angústias de seus pais. E esses pais, ao compartilharem suas preocupações, de perder aquele filho tão amado, foram também nutridos pela vontade de viver da criança.
DIREITOS
Françoise Dolto, psicanalista de crianças afirmava: “a criança sabe de tudo”. Concordo com ela. E esse saber precisa ser reconhecido e validado pelo adulto. Eu imagino que você queira saber do desfecho do caso que citei acima. A cirurgia salvou a vida da criança e hoje é um jovem a quem tenho o privilégio de encontrar vez ou outra. O mesmo deve acontecer com crianças internadas por Covid-19, que sejam cuidadas e tratadas com dignidade, que seja informado os motivos de sua internação e todos os procedimentos que serão realizados. Independentemente de sua idade, se é um bebê prematuro, isso mesmo, os bebês tem direito de conhecer seu estado, ou um pré-adolescente. As crianças tem direito à verdade.
Mas nem sempre é assim. A hospitalização de uma criança é algo anti-natural. Crianças não deveriam ter que enfrentar tão cedo a foice da morte. Mas infelizmente isso acontece. Essa semana estivemos assombrados pelos bebês prematuros em Manaus em risco de morte.
Não é uma realidade que a pandemia criou. Antes mesmo do horror evidenciado no sistema público do Amazonas, eventualmente os cuidados com a saúde dos bebês colapsam de tempos em tempos por todo Brasil. Os investimentos para as crianças que nascem mais vulneráveis ainda são muito aquém do que deviam ser. E isso não é novo para quem cuida do início da vida. Também para esses bebês tão pequenos é urgente que ofertamos o estatuto de sujeito. Isso quer dizer, trazer palavras à sua recente vida fora do corpo de suas mães.
Esses bebês não são meros organismos que podem ir para lá e para cá de acordo com a estrutura física hospitalar que se tem ou não, mas seres humanos repletos de esperanças de futuro. Pertencem a uma família, já portam uma história. E é a história que os precede e todos os melhores esforços de seus pais e daqueles que os apoiam em situações “traumáticas” condições fundamentais para um bom começo de vida e que fazem toda a diferença.
DANOS EMOCIONAIS
Hoje uma profissional que admiro muito me escreveu comentando a situação ao qual estaria sendo submetidos os bebês de Manaus. Terem que ser transferidos de seu estado, por falta de estrutura é algo que viola inúmeros direitos desses bebês tão pequenos. As pessoas de modo geral não tem dimensão do que passa uma família com um bebê internado.
Durante as guerras era comum afastar as crianças de suas famílias, no intuito de “salvá-las”. Essa atitude se apresentou completamente equivocada e temos inúmeras pesquisas que descrevem os danos emocionais das crianças separadas de suas famílias. Jenny Albry em seu livro “A Psicanálise de Crianças Separadas” nos reporta as consequências dessa medida, que foram planejada e executada pelos governos da época.
O lugar da criança é em sua comunidade, ao lado de sua família independentemente da situação que se encontra, adoecida ou não e deveria ser função de todos nós, a manutenção dessa garantia. Mesmo em tempos de guerra onde os inimigos são alimentados por nossas passividades. Lamentavelmente é um tempo muito ruim para ser criança no nosso país.
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