Como vocês bem sabem, pela foto acima que estampa meu rosto, ao lado do nome que agora toda segunda-feira terá voz para essa coluna, eu sou uma mulher branca na faixa dos 40 anos. Digo mais, branca e privilegiada. Tive a oportunidade de frequentar boas escolas e universidades, tenho uma profissão, um lugar para exercê-la. Sou uma das 100,5 milhões de mulheres que atualmente vivem em nosso país.
Mas, mesmo diante de todos esses privilégios, sofro, como muitas mulheres, os impactos dos fechamentos das escolas durante a pandemia. Há uma cultura nas catástrofes. Vocês já devem ter visto nos filmes onde há naufrágios: ‘Mulheres e crianças primeiro’, grita o comandante ao iniciar a entrada nos botes de salvamento. Ou seja, que as mulheres e as crianças deveriam ter prioridade vital para a manutenção do tecido social. É assim que leio essa metáfora.
Mas na realidade da vida, não é bem assim. As mulheres e as crianças têm sofrido um impacto ainda incalculável, não apenas com o isolamento social, mas posso enumerar também com as perdas financeiras e educacionais. A filósofa francesa Eizabeth Badinter, nos anos 70 escreveu a polêmica e fundamental obra “O mito do amor materno”, e mais recentemente, em 2010, publicou outra obra que fez muito barulho na França, lugar onde as taxas de natalidade caem ano a ano.
Falsa promessa
Em “O conflito: a mulher e a mãe”, Badinter constata que as mulheres em situações de crise são as primeiras a serem demitidas e incentivadas a retornar ao lar e empreender. E isso ocorre na falsa promessa do “tenha tempo para você e sua família”, ou no lindo discurso “seja dona do seu tempo”, ou ainda, “seja a sua chefe”. As mulheres não são as primeiras a terem a sua cidadania acolhida e respeitada, mas, sim, são as primeiras a serem riscadas do pacto social. Com as crianças não é diferente. Evacuem as crianças da cena social. Fechem as escolas.
Aqui do nosso lado do Atlântico, como não canso de repetir, as discussões quanto as questões sociais encontram-se com um “delay” vertiginoso e absolutamente delirante, uma vez que o mundo é interligado e as informações são instantâneas. Nós, brasileiros e brasileiras, não queremos saber, simplesmente.
Uma prova inconteste disso testemunhamos na semana passada com a decisão do governo do ES em fechar as escolas. Na semana anterior foi comemorado o dia do empreendedorismo e vi inúmeras manifestações positivas e contemplativas quanto ao empreendedorismo materno, empreendedorismo feminino, afinal 50% das empresas abertas durante a pandemia tinham mulheres como suas responsáveis.
A conta não fecha
Grande engodo. Lamento informar às mulheres e aos homens. O empreendedorismo é um nome moderno para algo que as mulheres sempre fizeram desde que o mundo é mundo. Promover trocas, as de mercadoria e as simbólicas. Enquanto os homens caçavam e caçam, foram - e são - as mulheres quem mantiveram o fogo acesso, desenvolveram a agricultura, o vestuário, as relações entre tribos. Ou seja, equilibram os pratos das relações familiares, sociais, parentais e laborais. A conta simplesmente não fecha, afinal, não dá para fazer tudo isso e ainda prover economicamente.
Com escolas fechadas, a única pergunta que fiz foi: ‘como as mulheres estão trabalhando, educando academicamente, cuidando da casa e provendo um mínimo de saúde mental para si e para seus filhos? Estavámos abandonadas, ficamos mais uma vez na escuridão, tal qual o Amapá, por alguns dias.
No meu caso eu volto a afirmar: sou privilegiada. Tenho um companheiro que, neste momento, pode absorver a grande responsabilidade financeira da casa. Mas perco o sono à noite só de pensar nas mulheres que são elas próprias as cuidadoras e a provedoras, num país onde 5,5 milhões de crianças não têm em seus registros civis o nome de seus pais, que dirá o suporte emocional e financeiro.
Enquanto bares, restaurantes, shoppings foram abertos visando às campanhas eleitorais e a chegada do Natal, quem está preocupado com as restrições severas que os governos estão impondo às mulheres e às crianças? Nas periferias, como as mulheres estão conseguindo manter um mínimo de dignidade e sanidade mental em suas vidas?
O que uma psicanalista tem com isso? Você está se perguntando. Absolutamente tudo! Afinal semanalmente famílias e mais famílias buscam suporte psíquico para conseguirem suportar a infinidade de sintomas, como inibições, ansiedades, a violência que anda assombrando com maior frequência as crianças e, principalmente, os adolescentes. Até o momento não vi qualquer campanha pública visando o bem-estar emocional das pessoas. Estamos preocupados com o vírus? Será? Estamos preocupados com as famílias? Não há preocupações que contemplem a saúde mental das pessoas. É infelizmente notório.
O momento não é de abertura do comércio, não é de comemoração, não há vacina. O momento é de esperar o retorno da onda, que ainda não passou, mas que já está nos mostrando que não estamos sendo representadas, enquanto mulheres e muito menos consideradas no modelo social vigente. Saber que houve um aumento de 50% na entrada das mulheres nas câmaras municipais é um pequeno respiro, porém ainda ínfimo. Mulheres, onde estão as suas vozes? Precisamos ouví-las.
Como estão equilibrando os pratos?
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