Todo imperativo guarda ciladas! Todo imperativo reduz - e muito - as subjetividades humanas, ou seja, a forma como cada um lida com o amor, as perdas, as demandas da vida e as frustrações.
Atravessamos um ano extremamente difícil. Todos nós tivemos e estamos tendo perdas sociais, financeiras e de entes queridos, cotidianamente. Nas últimas semanas, eu e minha família também fomos impactadas de maneira direta por essa terrível doença.
Sim, o traumático também chegou a minha casa. Passamos o ano inteiro nos mantendo em isolamento social o máximo possível. Como a grande maioria das pessoas que entende a gravidade da situação que estamos vivendo, tivemos o maior cuidado para não aglomerar, não transitar em excesso.
Mas, infelizmente, a Covid bateu em nossa porta. E estamos manejando, como muitas famílias, as incertezas dessa doença tão trágica. Não se preocupem, no meu núcleo familiar estamos bem, mas ela tocou a campainha da nossa família, que é extensa, e acertou em cheio uma pessoa a quem amamos profundamente.
Como eu previa, e venho falando com frequência nesta coluna, ninguém passaria ileso por essa doença, ora como paciente, ora como expectador impotente. Aqui em casa, fazemos parte do segundo time.
Quando eu digo para que não cancelemos o Natal, não estou estimulando de modo algum o consumo desenfreado e os encontros sociais ampliados que esta época do ano promove. Lamentavelmente, é possível ver da janela de minha casa as ruas repletas de consumidores.
Mas esquecemos, nessa situação, que somos nós as pessoas verdadeiramente consumidas, dia a dia. As nossas vidas e as vidas das pessoas que amamos se esvaem, sem retorno para o próximo ano.
Quando afirmo que não devemos cancelar o Natal, convoco todos para uma reflexão: afinal, o que é o Natal? Conhecemos sua real essência?
No Natal comemoramos a vida, o amor, a compaixão e a persistência familiar. Jesus não nasceu em uma situação confortável. Estavam em meio à guerra e à perseguição. Sua família era de migrantes. Encontraram apoio de desconhecidos.
Nem sempre podemos nascer nas condições ideais. Alguém sempre precisará cuidar de nós. Só temos uns aos outros na vida e, se tivermos muita sorte, encontraremos durante o nosso percurso outras pessoas que se solidarizarão com nossas lutas.
Todos os elementos dessa história são metáforas. E como estamos empobrecidos no entendimento dessas formas tão humanizadoras de transmitir as experiências vividas! Convido-os a estarem mais atentos a elas.
Mas, se prestarmos bem a atenção, essa também é a metáfora de nossa vida atual. Estamos em guerra, sem muitas armas, contra um inimigo microscópico que se aproveita de nossa maior fragilidade: a necessidade do outro! A necessidade dos encontros.
Estamos sozinhos, quando doentes e submetidos aos tratamentos. Não há visita de familiares, não há como resolver as pendências. Só podemos contar com os profissionais de saúde. Esses estranhos que não conhecemos e em quem precisamos confiar, que estão nas trincheiras de maneira tão honrosa, cuidando daqueles que não podemos cuidar.
Não consigo reconhecer maior prova da manutenção do pacto civilizatório do que o trabalho abnegado e persistente dos médicos, enfermeiras, fisioterapeutas, assistentes sociais, auxiliares de serviços gerais que estão zelando pelas pessoas que amamos e que estão hospitalizadas.
Nós, seres humanos, precisamos dos ritos, a vida sem eles é muito mais penosa. Este ano também perdemos as oportunidades de vivenciá-los. Muitos foram impedidos de dizer adeus. Tantas pessoas não pudemos velar, sepultar, nem prantear seus familiares e amigos.
No começo da pandemia eu já estava extremamente preocupada com os efeitos psíquicos e emocionais que vivenciaríamos durante e, principalmente, após esse período, no que dizia respeito às despedidas não vivenciadas. Já estamos contabilizando seus efeitos.
Os números de depressão, ansiedade, doenças somáticas, absenteísmo, Burnout, divórcios... crescem dia a dia. Sem contar os efeitos nas crianças.
Infelizmente vivemos num país que não cuida como deveria da saúde mental de sua população. Para muitos, o cuidado emocional é ostentação. Mas, na verdade, enfrentou e enfrentará melhor as situações de crise extrema quem conseguir manter algum grau de equilíbrio emocional e se permitir acessar ajuda, sem preconceitos, quando necessário.
Diante disso tudo, sugiro que arrumem a casa com o que vocês já têm dos outros Natais, conversem com as crianças, sejam sinceros quanto aos limites que estamos vivendo. É preciso construir uma nova realidade.
Todos nós podemos e devemos ser criativos: vale enviar e-mails para aqueles que amamos, ao invés de presentes, fazer vídeos, cartões, recitar uma poesia ou cantar uma música. Podemos criar novos ritos. A mesa não precisa estar repleta de pessoas, mas, sim, repleta de paciência e comedimento, para mantermos aqueles que amamos vivos para os próximos Natais.
Portanto, não cancele o Natal com sua família, mas, sim, viva-o na sua verdadeira essência.
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