Durante a ditadura chilena, a arte como forma de crítica e resistência teve um lugar de voz essencial para manter a esperança dos cidadãos em uma democracia não opressora, ou talvez mesmo a esperança do retorno dos ideais de Salvador Allende.
Uma música me chama atenção: "Mi unicórnio azul", de Sergio Rodríguez. O interessante na letra da música não é só o unicórnio, mas o fato de ele ser azul. Para mim, no simbolismo da arte crítica, a figura do unicórnio azul é o ícone das energias utópicas ainda remanescentes nos anos 1980, para usar a terminologia de Habermas.
A letra da música reflete a premonição do autor - durante a ditadura chilena - de que os sonhos estavam por acabar, sem deixar de acreditar na utopia mesmo absurda de o unicórnio azul um dia voltar:
Mi unicornio azul/ayer se me perdió,/y puede parecer/acaso una obsesión,/pero no tengo más/que un unicornio azul/y aunque tuviera dos/yo solo quiero aquel./Cualquier información/la pagaré./Mi unicornio azul/se me ha perdido ayer,/se fue.
O filósofo alemão Jūrgen Habermas entende que as energias utópicas da modernidade teriam se esgotado com o fracasso do socialismo e a opressão avassaladora do capitalismo financeiro. Por isso, a época em que vivemos ainda parece necessitada de um rumo ou de um caminho racional a seguir, que antes eram garantidos por energias utópicas impulsionadoras de um mundo mais justo, com divisão justa dos bens da vida.
O unicórnio azul, do compositor chileno Sergio Rodríguez, é esse último suspiro das energias utópicas da modernidade: a esperança de que o governo e o plano de governo de Allende voltassem, mesmo que se tivessem que pagar com a própria vida.
Não voltaram, e o que está aí é o resultado de anos de opressão. Primeiro, da ditadura política no Chile e, depois, da imposição de um capitalismo de mercado a la Escola de Chicago, retirando do trabalhador todas suas conquistas e possibilidades de viver uma vida digna com o esforço do seu próprio trabalho. Toda a dignidade foi retirada da população idosa, que tem de viver com uma aposentadoria, por vezes, no valor de meio salário mínimo.
Hoje já se contam 28 mortos e mais de 500 feridos nos protestos no Chile, que começaram há duas semanas, no dia 18 de outubro.
Nós, aqui no Brasil, sempre achamos que o Chile era um daqueles países que deram certo, com uma economia estável, ruas limpas, lugar para tirar férias!
Pois é, não é bem assim. Longe dos olhos de turistas, no Chile as universidades são particulares e poucos têm acesso ao ensino superior, a população pobre vive afastada dos bairros chiques nas cidades, numa herança da arquitetura apartheidista da ditadura de Pinochet.
E a arte? Alguns podem estar se perguntando: será que ela não deu conta do potencial crítico-emancipatório e foi preciso recorrer aos protestos e barricadas nas ruas?
A resposta é difícil, a arte sempre encontra seu lugar na crítica à opressão. Mas a violência que estamos vendo no Chile, essa da intolerância das forças de segurança do governo, do toque de recolher que tenta retirar o direito legítimo da população indignada de se manifestar, ela destrói toda energia utópica que pudesse ainda estar guardada em um ou outro espírito, e deixa-nos sem esperança. Retirar a esperança de um povo é o pior que se pode fazer!
Ou seja, para a arte, para produzir arte e para produzir modos de vida dignos, precisamos de energias utópicas, de acreditar em um mundo melhor. E o que fazem as forças militares nas ruas - em excesso - é justamente tentar destruir essas utopias.
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