Há praticamente dois anos, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário nº 1010606, no qual, familiares de Aida Curi, vítima de crime de grande repercussão, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1958, requeriam o direito ao esquecimento e pleiteavam indenização em face à TV Globo, que reconstituiu o caso, no início dos anos 2000, no “Linha Direta – Justiça”.
A ação foi proposta em 2004 e julgada improcedente, porém, a família recorreu ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, depois ao Superior Tribunal de Justiça e por fim, com todos seus pedidos indeferidos, ao Supremo.
O STF já reconheceu repercussão geral no julgamento do caso. Isso significa que a decisão a servirá de parâmetro para outras da espécie. Com o placar de 9 votos a 1, o STF fixou a seguinte tese: “É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social - analógicos ou digitais.
Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
O dilema relembra aquele travado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815, da polêmica das biografias não autorizadas. O debate, mais uma vez, referiu-se a possível atrito entre, de um lado, direitos à privacidade e à imagem e, de outro, à liberdade de manifestação e expressão e ao acesso à informação, todos garantidos pela Constituição, não havendo como estabelecer uma ordem prévia de prevalência de uns quanto aos outros.
O STF, Guardião da Constituição, prestigiou o princípio da concordância prática, segundo o qual, confrontando-se bens e valores assegurados constitucionalmente, não poderá haver integral sacrifício de um deles.
Reconhecer de maneira genérica, ampla e prévia a existência do direito ao esquecimento impediria que estudiosos e a sociedade em geral conhecessem detalhes da história e tracem alternativas para que erros ou barbáries de outrora não se reiterem, desprestigiando as memórias de vítimas de toda sorte de violações, mormente aquelas aos direitos humanos.
Tanto é verdade que, ao dar seu parecer contra o Recurso Extraordinário, a Procuradoria-Geral da República cita casos de repercussão local, mas que adquiriram interesse histórico com o tempo, como o da menina Araceli Cabrera Sánchez Crespo, sequestrada, violentada e assinada aos 8 anos de idade, em Vitória, em 18 de maio de 1973, data que, não por acaso, tornou-se o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
A Constituição veda a censura, porém, prevê consequências aos abusos, de modo que eventuais excessos ou inverdades em relação a fatos pretéritos devem ser resolvidos conforme exame específico, aplicando, se for o caso, indenizações, concedendo direito de resposta, ou até mesmo, dando-se efeitos penais.
Para tanto, é ferramenta útil o “princípio da finalidade”, que orienta que a coleta e divulgação de dados devem guardar relação com a finalidade pretendida. Nesse sentido, a comissão que cuida da revisão da Diretriz Europeia de Proteção de Dados entende o direito ao esquecimento como “o direito de indivíduos de terem seus dados não mais processados e deletados quando não são mais necessários para propósitos legítimos”.
Pretenso direito à privacidade não pode se traduzir em censura, já que, no caso de Aida Curi, por exemplo, o fato retratado pelo programa jornalístico não é falso, mas um registro histórico de uma cultura de violência contra a mulher. É preciso cuidado para que o direito ao esquecimento não seja utilizado no afã de revisionismo histórico, algo bem retratado no livro "1984", de George Orwell, em que o personagem principal da trama tem a função de reescrever o passado, ajustando-o aos interesses do grupo que se encontra no poder.
Como bem observado pela ministra Cármen Lúcia no julgamento das biografias não autorizadas: “cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição”.
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