A lei nº 12.711/2012 estabelece que as instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
A mesma lei determina que desses 50%, parte será destinada a candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, à proporção de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Mais adiante, em 2014, a lei nº 12.990 criou a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para candidatos pretos ou pardos. Ocorre que algumas instituições públicas, no afã de atestar a veracidade da autodeclaração do candidato, têm criado comissões de verificação racial, conhecidas como comissões de heteroidentificação. Mas até onde vai a legitimidade e legalidade da atuação dessas comissões?
Primeiramente, cabe enfatizar que ambas as leis referem-se a autodeclaração como pretos, pardos ou indígenas no ato da inscrição no concurso ou processo seletivo, conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE. Segundo os critérios do IBGE, considera-se parda a pessoa com variadas ascendências étnicas, além de mistura de características físicas decorrentes de miscigenação (descendentes de pai preto e mãe branca, por exemplo).
Entretanto, os editais de processos seletivos e concursos públicos da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) preveem que os candidatos que se autodeclararem pretos, pardos ou indígenas deverão ser aprovados por uma comissão que “levará em conta única e exclusivamente as características fenotípicas do candidato, jamais a ascendência” e os candidatos que não forem reconhecidos por tal banca serão automaticamente eliminados do certame, numa espécie de presunção absoluta de má-fé da universidade contra os candidatos.
Como os editais não seguem o critério do IBGE (que não se funda apenas em estereótipos) e não há regra objetiva sobre a definição dos fenótipos aduzidos pela Ufes, a coluna entrou em contato com a universidade questionando quais características físicas um candidato deve ostentar para ser caracterizado como preto, pardo ou indígena.
Em resposta, a Ufes informou que o candidato deve apresentar um “conjunto de características fenotípicas como boca, nariz, cabelo e cor da pele, que fazem com que a pessoa seja ‘lida’ socialmente como negra e potencialmente alvo de racismo”.
A análise pura e simples do critério fenotípico, além de ser demasiadamente rasa, lembra tempos sombrios em que havia tribunais raciais, quando Hitler, por exemplo, media o nariz dos judeus. Mesmo porque o critério de raça adotado pelo IBGE, que deveria ser seguido pela universidade, não se resume à cor da pele ou à textura do cabelo, pois o Brasil é um país composto majoritariamente por uma população miscigenada. Por isso, se não houver uma análise antropológico-social dos candidatos, a mera verificação de suas características físicas, além de conduzir a injustiças, cria um verdadeiro tribunal racial.
De mais a mais, como a lei fala em autodeclaração, quem legitimou tal Comissão de Heteroidentificação para definir quem será considerado preto, pardo, indígena, amarelo ou branco?
Diante disso, o Ministério Público Federal recomendou à Ufes a alteração do edital de um concurso público que impõe uma “presunção absoluta de má-fé” do candidato, caso ele não seja aprovado perante a Comissão de Heteroidentificação, o que vai de encontro a princípios fundamentais do direito brasileiro.
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Se o intuito for evitar burlas às leis que instituíram a reserva de vagas, a universidade deve adotar um critério mais objetivo e, principalmente, que não incorra no erro de se pautar exclusivamente nas características físicas do candidato, sem analisar sua ascendência e sua inserção na comunidade étnico-racial alegada, sob pena de se converter num tribunal racial.
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