No livro de Carolina Maria de Jesus, "Quarto de despejo", a vida dura da maioria dos brasileiros é apresentada sem retoques. O cotidiano da favela, que já foi contado algumas vezes e de diferentes maneiras, no livro ganha a perspectiva de quem vive na favela, mais especificamente a de uma catadora de papel que só pôde chegar até o segundo ano do ensino fundamental.
Para nós, que conseguimos chegar até a universidade, e para outros poucos, que como eu trilharam uma carreira acadêmica e possuem doutorado, pode ser muito difícil entender a dor de quem acorda sem saber se terá o que comer. O próprio fato de você estar lendo essas linhas já te coloca em um lugar diferente de grande parte do nosso povo.
Não digo isso para que se sinta culpado, ou mesmo para que se sinta, ao contrário, superior, digo isso para que a indiferença seja derrotada. Quando a escritora Carolina registrou em seu diário em 1955 que: "A democracia está perdendo seus adeptos. No nosso país tudo está enfraquecendo. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo o que está fraco morre um dia”, ela já nos mandava um recado. Não é possível que as promessas de campanha que incluem o povo, quando esses políticos se elegem e esquecem, e como ela menciona, olham o povo de olhos semicerrados, sem sensibilidade para o sofrimento de tantos.
Estamos diante de um governo federal que cortou 50% do orçamento da Farmácia Popular, cortou 87% da distribuição de leite às famílias em extrema pobreza pelo programa Alimenta Brasil (antigo Programa de Aquisição de Alimentos) e cortou 90% do orçamento do Casa Verde e Amarela, prejudicando os brasileiros mais pobres que sonham com moradias populares e a geração de emprego decente, através da construção civil.
Com uma imensa dívida social em um país onde ainda há mais de 11 milhões de analfabetos com mais de 15 anos, a tarefa de mudar o cenário social é um projeto de Estado, que precisa efetivar o pacto social da Constituição de 1988 para a educação das futuras gerações com vistas a mudarmos o quadro e a possibilidade de mobilidade social no Brasil.
Ao estudar a mobilidade social no mundo desde a década de 1990, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne 35 nações desenvolvidas e algumas outras convidadas, constatou que a distância entre ricos e pobres vem aumentando preocupantemente, principalmente a partir da crise financeira de 2008.
No Brasil, a situação consegue ser um pouco pior: penúltimo lugar na lista de 30 países, exibe uma desigualdade social e econômica gritante. Seis brasileiros têm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país. Os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%. Isso é chocante e, definitivamente, precisamos falar sobre as desigualdades.
Em um país onde uma mulher trabalhadora que ganha um salário mínimo levará 19 anos para receber o equivalente ao que uma pessoa entre os 5% mais ricos recebe em um único mês é a distância que nos une, segundo o relatório da Oxfam. Pintar o mapa do Brasil de vermelho e azul nas eleições presidenciais e estimular preconceitos é muito raso para se discutir o fosso social em que nos encontramos.
Sem resolver problemas estruturais que são heranças históricas de um país escravocrata como o nosso, estamos fadados a repetir discursos que não são verídicos. Nós não estamos vivendo em um país polarizado, nós vivemos em um país desigual, injusto e que criminaliza a pobreza. Sem políticas para o enfrentamento das imensas desigualdades e sem políticos que possam colocar o povo em sua plataforma de governo, estaremos à mercê de mitos, de líderes religiosos que servem a seus próprios propósitos e de aproveitadores de plantão.
O Brasil tem uma tarefa enorme nas próximas eleições do dia 30 de outubro, eu me inspiro na trajetória de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), que guiou seus quarenta anos de luta pelos direitos de indígenas, ribeirinhos e camponeses na Amazônia e em sua célebre frase disse mais do que eu poderia dizer: “Na dúvida, fique ao lado dos pobres”.
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