Jornalista de A Gazeta há 10 anos, está à frente da editoria de Esportes desde 2016. Como colunista, traz os bastidores e as análises dos principais acontecimentos esportivos no Espírito Santo e no Brasil

Machista e desrespeitoso: o futebol capixaba pelo olhar das mulheres

Entre torcedoras, jornalistas e outras profissionais, as mulheres que vivem o futebol capixaba contam relatos do que já presenciaram em um ambiente muitas vezes hostil e pedem por mudanças

Marcielly Netto, árbitra-assistente que foi agredida pelo técnico Rafael Soriano
Marcielly Netto, árbitra-assistente que foi agredida pelo técnico Rafael Soriano. Crédito: Thiago Felix/Divulgação

O último domingo (12) reservou ao futebol capixaba um dos episódios mais revoltantes de sua história. O treinador Rafael Soriano, que comandou a Desportiva na partida contra o Nova Venécia, agrediu a árbitra assistente Marcielly Netto com uma cabeçada. Uma cena vergonhosa que correu o país e mostrou como o esporte ainda é um ambiente hostil para o sexo feminino. O machismo, uma constante na sociedade, se manifestou mais uma vez no gramado.  Um ato injustificável, e que já foi punido com a demissão na equipe grená e a suspensão preventiva de atividades ligada ao futebol determinada pelo Tribunal de Justiça Desportiva do Espírito Santo (TJD-ES) por 30 dias, tempo em que o técnico aguardará o julgamento. 

A expectativa pelo julgamento de Soriano é de uma punição à altura da gravidade do ato. Um desejo de diversos setores da sociedade que se manifestaram em solidariedade à Marcielly, alvo da agressão, e a tantas outras mulheres que vivenciam o futebol capixaba e anseiam por serem respeitadas nos estádios. Por isso, hoje a coluna ouviu torcedoras e jornalistas que vivem o esporte. Elas contam os absurdos que já ouviram, presenciaram e o que sentiram na pele. E principalmente gritam pedindo pela uma mudança dessa realidade. 

RELATOS DE TORCEDORAS E JORNALISTAS QUE VIVEM O FUTEBOL CAPIXABA

  • Marcella Scaramella, jornalista

  • "Cobri futebol por quase dez anos e sempre fui apaixonada por isso, mas vivi situações que dariam um livro. Já fui xavecada por jogadores durante a entrevista, xingada por torcedores, pisoteada em confusão e também já ouvi gracinhas até por estar comendo churros (por conta do formato) na frente da arquibancada. Uma amiga jornalista já foi até agredida enquanto fazia uma entrevista em um estádio. É lamentável que isso ainda aconteça com as mulheres no mundo do futebol. Isso tem que mudar." 
  • Erika Lopes, torcedora do Real Noroeste  

  • "A situação do Soriano é só o que veio à tona de tudo que acontece nos bastidores do futebol capixaba. Posso falar aqui de algo que aconteceu comigo neste ano. No primeiro jogo das quartas de final do Capixabão eu fui ameaçada por um torcedor no Kleber Andrade depois dele achar que eu e alguns amigos estávamos colocando fogo na bandeira deles. Ele simplesmente virou para mim e disse que ali não existia Lei Maria da Penha e que ele ia me 'comer na porrada'. A diretoria do clube está ciente e a resposta que eu tive, após mandar mensagem contando tudo que aconteceu e mostrando o torcedor que me ameaçou, foi que no próximo jogo o presidente do teria o prazer de me receber pessoalmente. A resposta que eu tive da torcida que ele faz parte foi que eu não deveria levar isso adiante porque o torcedor não encostou a mão em mim. Foi só uma ameaça. 

    A paixão da mulher pelo futebol é sempre colocada em questão. É nítido o machismo e o preconceito que eles ainda tem com o sexo feminino dentro do estádio, no campo e na arquibancada. O que aconteceu com a bandeirinha prova isso. Outro caso recente aconteceu com a Vanessa, árbitra no jogo entre Vilavelhense e Real Noroeste. Os jogadores vão em cima de uma forma O que o Soriano fez foi mais uma prova desse comportamento. Espero que seja o momento para que outras situações possam ser denunciadas para esse panorama mudar."
  •  Emanuela Afonso, jornalista 

  •  "Na minha caminhada no jornalismo eu tive muita sorte de ter pessoas conscientes ao meu redor. Isso colaborou muito e ainda colabora para eu continuar no meio. É um ponto positivo, mas nem tudo são flores. Infelizmente ainda escuto piadinhas. Coisas que às vezes deixo entrar por um ouvido e sair no outro. Quando a gente é mulher tem que reforçar muito a ideia que está ali realmente para trabalhar. Quando você vai falar com um dirigente ou qualquer outro personalidade do esporte é comum essa pessoa não te escutar, não te dar a resposta que você precisa para uma matéria, ou mesmo não querer ser sua fonte apenas por você ser uma mulher. É algo que eu tenho que fazer o tempo todo, reforçar que estou ali para trabalhar e não apenas passando o tempo. 

    O que ocorreu com a Marcielly é lamentável, mas reflete muito aquilo que é a sociedade. Uma sociedade machista e que se manifesta também no futebol. Eu acredito que o Rafael precisa ser punido. E que essa punição ocorra de fato, não fique só no papel. E as pessoas que estão acompanhando o caso, também acompanhem a punição. Para que esta alcance o conhecimento das pessoas na mesma proporção que a agressão chegou. Isso não pode voltar a se repetir. É preciso um basta para essa situação não se repetir mais."
  • Renata Rissari, torcedora do Rio Branco 

  • "Nós, mulheres, ainda sofremos muito tanto dentro do clube ou como torcedora. Graças a Deus comigo nunca aconteceu algo do tipo, mais já vivenciei muito isso em estádio com muitas torcedoras que estavam ali para vibrar com o seu time, mas que eram vistas com outros olhos. Em 2018 e 2019 eu, Polyana, hoje nutricionaista do Rio Branco, e Suzana tivemos uma grande participação e uma grande vitória de estar à frente de um dos maiores clubes do Espírito Santo. Fomos criticadas, mas mostramos que lugar de mulher e aonde ela quiser, mostrando a nossa força para o futebol capixaba. 

    Foi lamentável o que aconteceu com a Marcielly. Um treinador ter esse tipo de atitude em pleno século 21: agressão verbal e física. Isso não deve ser esquecido jamais. A justiça precisa ser feita."

  • Luciana Castro, jornalista 

  • "Como jornalista esportiva, por seis anos cobri diversos jogos de futebol em muitas cidades do Espírito Santo. Falta muita estrutura nos estádios para receber as mulheres. Em muitos locais, ou não havia banheiro feminino, ou o banheiro disponível precisava ser dividido com torcedores homens. Não se tem também um espaço para receber a imprensa para as entrevistas, e nós, mulheres, precisávamos ficar em áreas comuns de passagem de torcidas para entrevistar jogadores, o que acabava nos deixando expostas a ações externas durante o exercício do nosso trabalho. Acredito que ainda há muito a se fazer. A mulher hoje está em todo lugar, cobrindo qualquer tipo de esporte, mas apesar de já vermos evolução, falta muito para que ela possa ser tratada de igual pra igual, com respeito."
  • Juliana Moreira, profissional do departamento de marketing do Estrela do Norte 

  • O futebol ainda é um ambiente predominantemente machista. De uma forma geral, a mulher ainda precisa provar que merece estar ali. Já ouvi comentários desagradáveis de pessoas em estádios, querendo que eu provasse entender para estar ali. E quando é com homem esse tipo de coisa não acontece. Eu sei que já melhorou muito de um tempo para cá. Fico feliz que o meu ambiente de trabalho é muito bom. O pessoal me respeita muito: diretoria e jogadores. E a gente vê as mulheres ocupando mais espaços no esporte. Mas ainda há muito a melhorar. Às vezes ainda ouvimos algumas piadinhas relacionadas à aparência. Sendo que a gente tá ali não por ser um rostinho bonito, mas porque a gente gosta, entende e sabe do que está falando. 

    E o que aconteceu com a Marcielly na partida me doeu muito. Sei o quanto é difícil conquistar um espaço nesse lugar, e ela tava ali trabalhando. Ela foi desrespeitada no trabalho dela por um cara que achou que poderia fazer aquilo. Não sei o que se passou na cabeça dele. Mas fico feliz pelo apoio que ela recebeu. Vi reportagens dela falando que não vai deixar isso a abalar, que vai seguir em frente. Isso é importante para mostrar que a mulher entende que merece estar naquele espaço e lutar para que acontecimentos como esse não se repitam. 

    Aqui no ES é bem difícil trabalhar com o esporte. Você ver uma mulher no futebol capixaba é motivo de muita alegria. Por isso, toda a minha solidariedade a ela porque eu sei que é difícil a caminhada. Mas a gente não pode desistir. Muitas mulheres abriram caminho para gente e precisamos fazer a nossa história para abrir espaço para as outras que virão."

  • Marcela Reis, jornalista 

  • Em dez anos nesse ambiente, os desafios como mulher e repórter foram muitos. Assédio e comentários inconvenientes eram parte da rotina, como ocorre com várias repórteres pelo Brasil. No caso dos estádios capixabas, ainda havia questões de estrutura como a falta de banheiro feminino em alguns estádios. O comportamento machista revolta, mas não surpreende. O futebol faz parte de uma sociedade machista e violenta, e traz essas características para seu universo. A mudança passa pela punição, mas também por uma transformação de cultura que, infelizmente, não parece estar próxima.

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