Uma questão sobre a Segunda Guerra Mundial que ocupa historiadores até hoje é a chamada “Questão Alemã”. Ela pode ser resumida na seguinte pergunta: se acreditamos que a educação, a cultura e o desenvolvimento científico são o caminho para o progresso material e moral, como um dos países mais desenvolvidos do mundo na década de 30 — a Alemanha da década de 30 tinha as principais universidades, os principais físicos e filósofos e uma impressionante vanguarda cultural — permitiu a ocorrência de todo o fenômeno nazista?
Assim como a Alemanha, os Países Baixos historicamente valorizam imensamente a educação, o saber, a ciência. Isso não deveria ser uma surpresa, afinal, em um país praticamente construído pelo homem e que tem um terço do seu território abaixo do nível do mar, a ciência e o domínio da natureza não são um luxo, mas uma questão existencial.
Lá, tradicionalmente, o professor universitário é uma das figuras mais importantes da sociedade holandesa. Na verdade, o título de professor é geralmente vitalício, regulamentado por lei e que só pode ser usado pelas pessoas no topo da hierarquia acadêmica (o que no Brasil seria chamado de professor titular, ou professor catedrático). Etimologicamente, professor significa aquele que professa (declara publicamente), mas conta-se por aqui que professor é também aquele que profetiza, ou seja, aquele que nos conta como vai ser o futuro.
Como professor catedrático e diretor de um grupo de pesquisas em Ciência de Dados e Inteligência Artificial nos Países Baixos, nas últimas semanas, me peguei incapaz de “contar sobre o futuro”. O atual governo holandês propõe cortes de até 1 bilhão de euros (mais de R$ 6 bilhões) para as universidades e vem cada vez mais dificultando a atracão de talento internacional para o país. Isso em um contexto no qual assistimos a uma acirrada disputa global pelo domínio da tecnologia em Inteligência Artificial com importantes implicações geopolíticas.
Enquanto isso, na Alemanha, em particular, na cidade de Leipzig, assistimos nas últimas semanas a episódios tristes em que duas pessoas fizeram em público a infame saudação nazista — o que é um crime na Alemanha —, uma delas durante uma peça de teatro. De forma geral, estamos testemunhando, em diversos países, uma onda de desvalorização das universidades e do saber científico.
Diante de tudo isso, me peguei pensando em ciência, religião e em Leipzig. Um dos principais colaboradores no meu doutorado (defendido há duas décadas) trabalha em Leipzig – ele ainda trabalha com seus mais de 80 anos. Ele, um grande logicista alemão que, no início deste século, era figura central em uma importantíssima iniciativa para formalizar teorias filosóficas para sistemas artificiais; ela, uma das cidades de maior caráter, história e vida cultural que conheço. Por exemplo, em Leipzig foi filmado o excelente “Cortina de Ferro” e é onde foi criada a primeira revista cientifica do mundo (por volta de 1500). Em Leipzig, Bach regia o órgão de uma das igrejas e foi onde Goethe escreveu Fausto.
Estive lá pela primeira vez há 23 anos. Na ocasião, em frente ao local onde me hospedara havia um edifício-caixote típico da arquitetura soviética com os dizeres em letras garrafais: “Labor Omnia Vincit” (o trabalho tudo vence). A cidade, assim como outras cidades do leste alemão, fora estupidamente e covardemente bombardeada pelos aliados na Segunda Guerra, depois que a guerra já havia acabado. Nos buracos deixados no rosto da cidade, edifícios foram reconstruídos sob o domínio soviético. O resultado era um caleidoscópio quase surrealista em que a arquitetura barroca original convivia com os edifícios-caixote da arquitetura soviética.
Algumas dessas construções guardam interessantes curiosidades históricas. Uma delas é um hotel em que todos os estrangeiros eram obrigados a se hospedar. Depois da queda do muro, descobriu-se que que esse hotel era coberto de escutas e sistemas de espionagem. Outro edifício interessante, também destruído pela guerra e reconstruído sob domínio da URSS, é o prédio principal da Universidade de Leipzig.
Uma parte essencial da vida cultural da cidade, a Universidade de Leipzig foi fundada em 1409 e em sua órbita intelectual, além de Bach e Goethe, passaram o músico Wagner, Leibniz (um dos maiores filósofos de todos os tempos, criador do Cálculo Diferencial e Integral em paralelo a Newton, o descobridor do sistema Binário no século 17), Werner Heisenberg (criador do principio da incerteza em física quântica), Ferdinando de Saussure (criador da Semiótica), Angela Merkel, Friedrich Nietzsche, Gustav Fechner (criador da Psicofísica - que afirma em seu livro de 1860 que mente e corpo são partes de uma única realidade), Paul Ehrlich (imunologista, descobridor do primeiro tratamento de Sífilis), Wilhelm Wundt (criador do primeiro laboratório de psicologia em 1879), Tycho Brahe (que descobriu antes da invenção do telescópio que as tábuas astronômicas de Copérnico estavam incorretas), entre outros.
Quando estive por lá pela primeira vez em 2002, o edifício-caixote da universidade tinha um painel de aço monumental em sua fechada com uma cabeça gigante de Karl Marx. Naquela época, ao lado desse prédio, estavam as ruínas da igreja de São Paulo também destruída, não pelo bombardeio aliado, mas pela estupidez soviética em sua cruzada antirreligiosa.
Em 2009, como parte da celebração dos 600 anos (!) da universidade, o prédio da sede universitária foi reconstruído. Foi reconstruída também a igreja de São Paulo e incorporada a esse. Na verdade, seria mais preciso dizer que o novo edifício funde universidade e igreja como se não existissem fronteiras entre eles. O resultado é dos prédios universitários mais bonitos que já vi. Dentro da edifício-templo, observa-se a convivência completamente harmônica de estátuas de santos católicos com bustos de “santos” laicos, como os que cito acima.

A ideia de templo como metáfora para a universidade não é nova. Por exemplo, a Universidade de Paris I (também uma das mais bonitas que já vi, com seus afrescos no teto das salas de aula que hipnotizam o palestrante e a plateia) chama o seu prédio principal de Pantheon Sorbonne. Pantheon, ou seja, a casa de todos os deuses. Analogamente, a Universidade de Oxford — que tem um dos principais departamentos inteligência artificial no mundo — tem colégios como o Christ Church (Igreja de Cristo), no qual foi filmado parte do filme Harry Potter.

Leipzig, no entanto, deu um passo além: a antiga igreja de São Paulo, agora reconstruída, funciona ao mesmo tempo como a Aula Magna (a sala principal de aulas) da universidade e como igreja. Ali se alternam palestras científicas e missas, no mesmo espaço. Além de seu enorme valor estético, o edifício-templo é a expressão clara de uma instituição acadêmica que enxerga harmonia e ausência de fronteiras entre os diversos saberes que tentam propor caminhos para entendermos esse e outros mundos.
Nele não há mais espaço para a cabeça de Marx, esquecida em um edifício afastado da universidade. O inimigo comum do saber técnico e da religião é outro: a irracionalidade. De um lado, a irracionalidade da guerra e da ciência-técnica-sem-ética cujas bombas destruíram o templo do saber; do outro, a irracionalidade do dogmatismo cego soviético que destruiu o templo da alma e que ao tentar destruir a fé, a substituiu por uma fé-ideologia opressora, destrutiva e castradora do espírito.
Voltamos à pergunta inicial: como a irracionalidade pode emergir em países como a Alemanha e os Países Baixos como seus históricos de valorização do conhecimento e de suas instituições e com educação, cultura e desenvolvimento tecnológicos tão avançados? Uma resposta parcial nos é oferecida por Yuval Noah Harari em seu mais recente livro ‘Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à Inteligência Artificial”.
No argumento proposto por Harari, a informação pode nos revelar a verdade sobre o mundo e como ele funciona, mas essa não é sua única e talvez nem seja a sua mais usual função. A informação é também frequentemente usada como mecanismo de coordenação, em particular, realizando-a através da criação de ficções que, em sua acepção mais geral, inclui fronteiras dos estados, algumas das arbitrárias divisões entre grupos humanos, o dinheiro, e as ideologias.
A evolução tecnológica e a explosão dos mecanismos de aquisição, difusão e processamento de informação obviamente contribuem para a sua primeira função (a de entender o mundo), mas, infelizmente, pode contribuir para que sua função de coordenação seja feita através da proliferação de informações falsas, da criação de bolhas divisivas, dos linchamentos virtuais e da criação de novas ideologias tecno-utópicas.
Nesses tempos de cegueira ética na ciência (incluindo na Inteligência Artificial), na religião, na política e no trabalho – que ainda pretende tudo vencer, é prudente lembrarmos do sábio conselho do escritor e filósofo G.K. Chesterton, que dizia que o problema de quando as pessoas perdem a fé (ou são privadas dela) não é que elas não acreditam em nada, o problema é que elas acreditam em tudo.
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