"Você imaginava chegar à idade que está hoje?".
Após um tempo em silêncio refletindo a questão, ela me responde: "Não, eu pensei que morreria com a mesma idade da minha mãe, que se foi aos 72 anos muito velha e doente. Descansou, coitada!", disse.
Encontro dona Clara*, 81 anos, em casa, deitada, ou melhor dizendo, prostrada, em sua cama. Um diagnóstico anterior de depressão me leva a esse primeiro contato, a pedido, e por insistência de sua única filha.
Por força do hábito, ou cacoete profissional, gosto de fazer aos idosos com quem converso, essa mesma pergunta: você imaginava chegar à idade que está hoje? As respostas sempre me soam reveladoras.
Com um diabetes descontrolado aos 68 anos, sem dar a devida atenção aos picos hiperglicêmicos, com os quais havia aprendido a conviver, ainda aproveitando a aposentadoria tardia (começou a trabalhar mais velha por conta do marido), Clara precisou passar pela amputação de seu pé direito. Encerrando a fase de “lua de mel” de sua aposentadoria.
"Viajei muito antes disso. Era muito bom. Mas agora acabou, né!?", diz.
"É? Acabou?", respondo, devolvendo a pergunta.
A vaidade frente a limitação física, enfim lhe restringiu ao seu aposento. Numa rotina circunscrita e reclusa ao ambiente doméstico, o autocuidado foi lentamente se perdendo.
Apesar de muito zelosa com a aparência (sempre fora muito bonita) o desregramento com a alimentação e a vida sedentária eram paisagem contínua durante os anos dedicados ao serviço público em um cargo de alto escalão. "Viajava muito à trabalho. Isso era privilégio de poucas mulheres à época", ela me disse.
E a doença, antes tratável, perdeu o controle. Com 72 anos, deprimida e restrita ao leito, Clara um dia acorda e não consegue mais enxergar. A vista que já estava cansada, se perdera dela.
De lá pra cá, tirando o entra e sai de cuidadores e outros profissionais que lhes prestam assistência e a visitam diariamente, pouca coisa mudou nesses últimos anos. "Não sei pra que esse monte gente vindo aqui. Não vai adiantar nada", desabafou.
Alguns encontros depois - com ela mais receptiva às nossas sessões - quando olho para a cronologia e a linha dos acontecimentos em torno de seu adoecimento, me chama atenção o início de sua “sobrevida” e a expectativa que ela própria nutria acerca de sua vida, ou melhor dizendo em termos gerontológicos, de seu Health Span (termo em inglês criado para descrever o “tempo de vida saudável das pessoas"). Naquela história parecia haver uma relação direta entre o que ela esperava e o que estava realmente vivendo.
De fato, dona Clara vivera em intensidade, embora talvez em fuga, até os 68 anos. Os quatro anos seguinte foram marcados pela tentativa de negar sua realidade, e ao perder a visão, o fim então se consolida e a resistência dá lugar a desistência. Entregou-se, como que morrendo em vida. Parece que a luz de Clara se apagou com a mesma idade da história de sua própria mãe.
Olhando em volta, noto que isso se repete em outras histórias, com outras pessoas que atendo, que já atendi enquanto psicólogo e também com algumas com quem convivo. Nem sempre com a mesma precisão, mas as idades em que as pessoas geralmente adoecem na velhice lembram as idades que inconscientemente imaginavam atingir em vida.
É como se a expectativa (ou o desejo dela?) sobre os anos a serem vividos tivesse uma influência na realidade da história das doenças que marcam as velhices e também a morte. Será possível? Me pergunto em meus devaneios. Pura viagem.
Será? Falando nisso, quais são as primeiras coisas que se definem quando se pretende viajar? Eu mesmo respondo: primeiro é o local (para onde se quer ir) e depois a data (quando?).
Pois bem, com o envelhecimento e a vida, também não pode ser diferente. É preciso definir o “local” e a “data”, e a partir daí, deixar claro e estabelecer “como” se pretende chegar lá, ou seja, os detalhes da viagem.
"Até quantos anos (idade etária) você pretende viver?", é a minha pergunta.
Feito isso, seguem-se outras questões: de que forma a vida que você leva hoje contribui para o tempo à sua frente, até chegar a sua idade desejada? O que fazer para chegar lá da forma que se deseja?
E aí, nessa busca, você vai perceber, que todo dia, surgem novas 'receitas' para a longevidade. Contudo, eu te adianto que a gente já sabe que o trivial funciona. Não precisa enfeitar.
Cuidados com a alimentação, manter-se fisicamente ativo, manter os cuidados com os seus relacionamentos (vida social) e com a sua saúde mental, é básico e pode ser acessível a grande maioria das pessoas.
Mas aqui entre nós: da receita ao prato pronto, o caminho é bem longo.
Olhando de perto, dona Clara tinha conhecimento, sabia que as coisas não iam bem e até o seu desfecho era notório, mas se manteve inerte. Talvez porque não esperasse muito (afinal, não esperava viver mais que sua mãe) não assumiu para si as suas possibilidades. E assim, como num luto antecipado, talvez anunciado, manteve seu envelhecimento na fase de negação.
Nesse contexto, afinal, a exemplo de Clara, se já sabemos o que é preciso fazer, por que não fazemos, por que motivo não assumimos o controle do nosso próprio envelhecer?
Parece que seguimos com vontade (que dá e passa, como diria o ditado) mas não assumimos o desejo de viver muito. Seria por medo da velhice? Ou por medo de se questionar e mudar os próprios hábitos?
Bom, seja como for, já temos uma evidência muito clara sobre esse processo: envelhecer bem demanda planejamento.
* Clara representa a história de duas pacientes distintas acompanhadas em psicoterapia domiciliar em momentos distintos de minha trajetória profissional.
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