“Estamos condenados à Liberdade". Jean Paul Sartre
Agora, já sem relógio, a leve sensação de fome, além do sol que já vai bem alto no céu, dá sinais de que talvez já passe do meio-dia.
É bom observar as crianças na beira da água, enquanto os pés descalços remexem a areia de um lado para o outro. Livre do tempo e a mercê da própria vontade, sem a rigidez dos compromissos cotidianos, sem hora para acordar, comer ou dormir, os dias vão se perdem e o calendário vai se tornando sem sentido.
É como escutei certa vez numa viagem: “Se tenho sede, bebo; se tenho fome, como; se tenho sono, durmo”. Sem barreiras. Sou eu ditando o meu próprio ritmo.
Que dia é hoje mesmo? Essa é, ao menos para mim, a frase que mais simboliza os períodos de férias que já desfrutei até então.
Diante daquele cenário, sentado, me lembrei de uma conversa que ouvi entre dois amigos que se encontraram depois de alguns anos sem se verem:
"Rapaz, quanto tempo!".
"Como estão as coisas? Está trabalhando?"
"Sim. Agora vivo de 'ar marinho'".
"É mesmo? Mudou completamente de ramo, né?".
"Isso. Eu me aposentei".
"Como assim, aposentou?".
"Pois é,
agora eu fico na beira da praia o dia todo só sentindo o ar
marinho".
Piadas à parte, a questão que se impõe agora é: o que fazemos com o nosso 'tempo livre'?
Uma vida ouvindo sobre liberdade, e até hoje essa palavra soa como algo complexo. Embora saibamos que o conceito é vasto e passível de infinitas reflexões, agora olhando para ela de forma prática e diária, o que se insurge é como se esta se reduzisse a apenas a ausência de rotina.
Repara: quando a maioria de nós deseja a 'liberdade', geralmente deseja apenas 'tempo livre' para fazer somente o que se quer, sem qualquer limite ou regulador. Logo, desejamos uma liberdade enquanto ausência de rotina. Pense nisso!
Num breve retrospecto, até então, fomos ensinados que a nossa vida está dividida em três etapas: a primeira é desenvolver–se, e se preparar para o trabalho e/ou as responsabilidades e rotinas de uma vida adulta; a segunda é viver a vida adulta com as suas responsabilidades e rotinas; e a terceira é aposentar-se para, enfim, sermos livres.
Sob tal viés, a liberdade então seria o grande pote de ouro no final do arco-íris. Será isso?
Considerando que esse seja mesmo o caminho, quanto tempo é possível viver (bem!) de 'ar marinho'?
Em seu livro “Não há tempo a perder”, o autor e navegador Amyr Klink nos conta uma passagem na qual durante um período de 12 meses que passou sozinho na Antártica, no intuito de ter tempo livre para conhecer as geleiras, resolveu adiantar suas rotinas no barco fazendo 200 litros de água, descongelando gelo. No entanto, após dois dias de trabalho dedicado e árduo, depois de uma noite em que foi dormir exausto pela empreitada, ele acorda na manhã seguinte e se depara com toda a água congelada. Isso, mesmo, os 200 litros de gelo convertido em água, haviam se tornado gelo novamente.
Conclusão (nas palavras do próprio Klink): “Foi nesse momento que me dei conta da existência de tarefas que nunca se encerram, que precisam ser feitas e refeitas a cada dia. Não podemos antecipar o tempo de fazê-las. Por melhor e mais avançada que seja a tecnologia usada, o ser humano não pode possuir o tempo.”
Liberdade então aqui, sob essa ótica, pode ser entendida não como a ausência de rotina, mas como a possibilidade, ou melhor, a necessidade de se criar uma rotina que possibilite fazer o que tem que ser feito para então fazer aquilo que se deseja. E foi assim, não querendo possuir o tempo, que lhe foi possível explorar as geleiras.
É só olhar em volta. Todo ser vivo vive seus ciclos, suas fases; e cada fase tem suas rotinas.
Não precisamos do tempo, quando a rotina nos liberta.
A rotina, do ponto de vista psicológico e neurocientífico, pode ser definida como um conjunto de hábitos ou padrões de comportamento realizados regularmente, seguindo uma sequência (quase) previsível. Tal definição abrange desde atividades diárias básicas, como higiene pessoal e alimentação, até tarefas mais complexas, incluindo trabalho, exercícios físicos e interações sociais. A rotina é fundamental para a estruturação do tempo e para a organização da vida cotidiana, nos oferecendo um senso de previsibilidade, segurança e controle.
Sendo assim, a consistência e a previsibilidade das rotinas fornecem um quadro de estabilidade que pode ser particularmente benéfico em períodos de mudança ou estresse, contribuindo para a resiliência psicológica e o bem-estar.
À medida que envelhecemos, enfrentamos mudanças significativas, que podem incluir alterações na saúde, a diminuição da mobilidade, a perda de entes queridos e a transição para a aposentadoria. Nesse contexto, a manutenção de rotinas pode fornecer uma estrutura essencial para a estabilidade e a qualidade de vida na velhice.
Portanto, assim como o envelhecimento não acontece somente com a velhice, a liberdade não está (só) na aposentadoria. E já que estamos condenados a ela, cuidemos bem da nossa liberdade!
Envelhecer é (re)criar rotinas.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.