“Prefiro os erros do entusiasmo à indiferença da sabedoria". Anatole France
“Pai, me mudaram de turma?”. "Será que aquela menina vai ser da minha sala?“; “Quem vai ser meu professor de matemática?”; “E o horário de acordar, vai dar tempo?”.
Após uma semana marcada pela ansiedade do retorno: a volta às aulas.
No caminho até a escola, um silêncio diferente nos acompanha. Embora diferente, agradável, bom de ser sentido. Ela segue concentrada, pensativa, um pouco monossilábica até o portão. Mas um certo brilho nela marca algo que me chama a atenção.
11 anos. Quanta vida pela frente! E me despeço de minha filha na calçada.
Enquanto a observo abraçando forte as amigas, percebo que aquele brilho era compartilhado. Havia uma empolgação, um entusiasmo quase que contagiante no ar.
Respiro fundo e a sensação que vem desperta boas memórias da infância. O que sinto me faz sorrir.
Enquanto sigo ao volante, trânsito lento (quase parado) à frente, meus pensamentos se movem observando as pessoas que chegam à escola: os pais em sua maioria com semblantes que demonstram seriedade (talvez para não se contaminarem de infantilidades), enquanto as crianças, em quase uníssono, pareciam apresentar aquele mesmo brilho da minha filha e suas amigas.
A impressão é de que havia ali uma espécie de sintonia, um fio imaginário unia aquelas crianças num entusiasmo coletivo. As crianças pareciam todas ansiar por aquele momento.
Falando em entusiasmo, acho que a palavra aqui caiu bem para definir a cena. Afinal, entusiasmo origina-se do termo grego ‘enthousiasmós’, o qual transmite a ideia de 'possuir um deus interior' ou 'ser inspirado por uma divindade’ (o famoso estar com o “rei na barriga”). Pode-se caracterizar o entusiasmo como uma condição de intensa animação espiritual, marcada por uma ardente paixão.
Observe aí, de maneira geral as crianças carregam essa animação espiritual continuamente e até em pequenas coisas (para nós!), e mesmo diante de situações caóticas elas demonstram isso.
Volto para mim e penso: em que momento nos perdemos disso!? Em que momento deixamos de nos entusiasmar a ponto de extravasar em nossos olhos, vozes, poros, gestos? Será que o amadurecer da vida, que acompanha o envelhecimento, nos tira tal intensidade? Ou será que, por acreditar que na idade adulta não nos cabe o deslumbramento com a vida, nos perdemos disso ao amadurecer?
Considerando a nossa expectativa de vida, se tomarmos os 76,8 anos e arredondarmos para 80, dividirmos isso em duas metades, teríamos duas vidas de 40 anos. Correto? Nesse contexto, o tempo cronológico de cada metade é o mesmo, ou seja, quarenta anos, correto? Sendo assim, por que então encaramos cada fase de forma tão distinta?
Bom, se você acompanhou meu raciocínio até aqui, já entendeu que na primeira década da segunda metade, ou seja, aos 50, estaríamos no que seria equivalente aos 10 da primeira. Aos 50, ainda temos muita vida pela frente! No entanto, nessa quinta década, a maioria passa bem longe daquele entusiasmo com a vida de quando se tem 10 anos.
Então para onde vai o “brilho” da primeira metade de nossas vidas?
Temos algumas pistas.
Nessa nossa simulação, a primeira metade da vida, na infância, especialmente nos primeiros 10 anos, ocorre um rápido desenvolvimento em várias dimensões, tanto física, cognitiva e também emocional, essencial para a nossa adaptação ao mundo, a formação da personalidade e de nossa identidade.
Aos 50 anos, a maioria das pessoas já concluiu o seu crescimento físico, entrando em uma fase de manutenção ou até mesmo (para aluns) declínio de saúde física e/ou cognitiva, o que afeta a percepção de valor e experiência de vida. Com o envelhecimento, o acúmulo de experiências muda a percepção do tempo e da vida, contrastando a visão de mundo entre o adulto e a criança.
Após os 50, surge também uma maior consciência sobre a finitude da vida, levando a uma reavaliação de prioridades e significados, o que torna a segunda metade da vida qualitativamente distinta da primeira, marcada por uma percepção de mortalidade que antes era algo totalmente abstrato.
Notou as diferenças?
Daqui, colocando esses recortes na mesa, após um pequeno recuo para ampliar o panorama, o que me salta aos olhos é a sensação de que nos acompanha constantemente uma vida de dualidades. Sim. É como a vida tivesse, necessariamente, de se constituir sempre de lados opostos: rápido e devagar; crescimento e declínio; perdas e ganhos; vida e morte. E são medidos e escolhidos a partir de nossa racionalidade e julgamento, influenciados (nós) sempre por um contexto social, histórico e cultural que nos atravessa, nos contorna e nos molda em cada fase de nossas vidas.
“Criança é inocente, por isso se deslumbra com tudo”.
“Adulto não pode agir assim”.
“Você está velho demais para isso”.
E é nesse jogo dual, que marca o nosso envelhecer, que o brilho da infância parece se perder, pois o entusiasmo sucumbe a tentativa de seu entendimento (onde se encaixa este momento que estou vivendo?), que o avalia e classifica a partir das experiências acumuladas.
Portanto, o antídoto talvez seja “o presente”. Viver o presente, se fazer presente, no aqui e no agora. Afinal, quem está “com o rei na barriga” vive na intensidade do momento. Nem antes; nem depois.
Mas sabe algo que noto nas pessoas que vivem muito? Elas não perdem a capacidade de se entusiasmar.
Que a sabedoria não nos torne indiferentes.
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