Gustavo Souza Correa é psicólogo e graduando em gerontologia. Entusiasta da longevidade, trabalha há mais de 18 anos com a temática do envelhecimento. Nesta coluna, nos convida a ressignificar a passagem dos anos e trilhar uma jornada de autoconhecimento para viver mais e melhor.

O envelhecimento é um processo contínuo de mudanças, queixas e adaptações

Com tantas possibilidades e desfechos, convivemos com a ideia de que para se viver bem é necessário manter uma atitude exclusivamente positiva, não reclamar

Publicado em 21/05/2024 às 08h00
Idosa reclamando
Você conhece alguns bons reclamões que chegaram muito bem a casa dos 80, 90 anos. Crédito: Shutterstock

Você reclama?

Você é do tipo que reclama das coisas que lhe acontecem, reclama dos acontecimentos em geral, do que deixa de acontecer, do que fez e do que deixou de fazer?

Hardy, personagem de um desenho animado que preencheu os horários infantis na TV entre as décadas de 1960 e 1990, era uma hiena. Só que, contrariando a imagem que temos de sua espécie, Hardy não se expressava com “gargalhadas”, mas sim se queixando das circunstâncias (geralmente desastrosas em que se envolvia), apoiado sempre em seu bordão: “Oh céus, oh vida, oh azar!”

Uma caricatura do “chato reclamão”! Oh azar!

Em meio a uma pausa para o café, eu me divertia com o breve flashback desse desenho… até que, no horário marcado, a recepção chama: "Gustavo, a visita das 10h chegou".

"Seja bem-vinda! A gente falou ontem ao telefone . Tudo bem com você? Como eu posso te ajudar?".

"Estou procurando uma casa para hospedar uma tia. Ela já está idosa e precisando de mais cuidados, sabe?".

"Entendo. Bom, primeiro a gente vai conversar um pouco para que eu compreenda melhor o que você está procurando e depois eu lhe apresento a casa. Pode ser assim?. Então me fala sobre ela. Como está a sua tia?"

"Bem, a minha tia tem 86 anos, é solteira, e não teve filhos. Está bem de saúde, os exames dela estão ótimos, está com as taxas melhores que as minhas. Mas anda um pouco esquecida. Ela não tem tomado os remédios corretamente, e já se perdeu duas vezes pelo bairro. Mas não quer ninguém morando com ela. Reclama de tudo. Reclama e faz confusão".

"Só pra você ter ideia, outro dia ela colocou a garrafa térmica na trempe do fogão para esquentar a água, e por pouco não provoca um incêndio. Quando eu cheguei, ela ainda reclamou que a garrafa não prestava e que eu tinha que providenciar uma outra, melhor que aquela. Enfim, acho que ela já não pode mais morar sozinha.

E prossegue…

"Interessante né, a minha mãe, irmã dessa tia, não reclamava de nada nessa vida. Pra lhe ser sincera, eu não me lembro de ouvir a minha mãe sequer levantar a voz alguma vez, e, mesmo assim, teve um 'derrame' e faleceu por conta disso. Morreu antes dos 70. Uma santa, coitada! Já essa minha tia, smpre reclamou de tudo. Quando criança, a gente mal podia se mexer quando ia na casa dela que logo vinha 'sermão'. Percebeu?".

Olha só que interessante: apoiado na crença que parece estar embutida nessa história, me pergunto então se existiria aí alguma relação entre o hábito de reclamar e a longevidade? Será que não reclamar nos faria viver mais? Por outro lado, viver como a Hiena Hardy nos aproximaria mais cedo de nossa finitude ?

Seguindo essa linha, se formos dissecar o mecanismo da queixa, talvez tenhamos o seguinte caminho: antes da reclamação, por norma, existe uma expectativa que, ao ser frustrada, gera um incômodo. Ao reconhecer o incômodo, este, dotado de razão, pode então ganhar um nome, diante do qual podemos:

  • Falar dele (reclamar), no intuito de organizar a sua resolução;

  • Falar dele (reclamar), a fim de alguém (que não eu!) resolva;

  • Falar dele (reclamar), em tom de desabafo, sem necessariamente pretender uma resolução;

  • Não falar nada e deixar ir;

  • Não falar momentaneamente, para “maturar” o processo;

  • Não falar e se ressentir.

Contudo, mesmo contando com tantas possibilidades e desfechos, de uns tempos para cá, convivemos com a ideia de que para se viver bem, e compulsoriamente, viver mais, é necessário manter uma atitude exclusivamente positiva ante a vida e… não reclamar!

Mas, na prática, garanto que você também conhece alguns bons reclamões que chegaram muito bem a casa dos 80, 90 anos.

Dito isso, voltando ou ponto, independente da sua resposta à pergunta de abertura dessa coluna, a questão aqui talvez não seja tanto se você faz ou deixa de fazer, ou seja, se reclama ou não, - até por que, todos nós, em menor ou maior grau, mais dia ou menos dia, novos ou velhos, reclamamos - mas sim o que você faz com isso.

A queixa, como vimos, é o reconhecimento, ou a tentativa de reconhecer um incômodo. E, diante daquilo que nos incomoda, temos sempre escolhas. Até porque, não fazer nada é também uma escolha.

Parafraseando Jean Paul Sartre, é o que você faz com aquilo que lhe incomoda? Essa sim precisa ser a questão que nos interessa no curso de nosso envelhecimento, pois envelhecer é acima de tudo um processo contínuo de mudanças, percebidas e sentidas principalmente no corpo, mas que precisam ser elaboradas na alma.

Nesse contexto, diante das mudanças, surgem os incômodos. Os incômodos, por sua vez… agora você já sabe!

E assim, o envelhecimento passa a ser um processo contínuo de mudanças, queixas e adaptações.

E o ciclo se fecha.

No final, é o que dizia o Grande Charles Darwin:

“Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”.

Oh vida!

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