Gustavo Souza Correa é psicólogo e graduando em gerontologia. Entusiasta da longevidade, trabalha há mais de 18 anos com a temática do envelhecimento. Nesta coluna, nos convida a ressignificar a passagem dos anos e trilhar uma jornada de autoconhecimento para viver mais e melhor.

Onde estamos investindo o tempo para a nossa velhice?

Já notou como parece lugar-comum encontrarmos pessoas idosas falando sobre doenças, comprometimentos de saúde e tratamentos

Publicado em 18/07/2024 às 08h00
Envelhecimento
Contar histórias é reviver memórias. Crédito: Shutterstock

Que alegria foi o dia em que descobri o endereço das embaixadas (que se concentravam no Rio e em Brasília, naquela época) para onde poderia enviar cartas pedindo selos para a minha coleção.

Antes disso, a única opção era ficar atento às correspondências que chegavam lá em casa, ou na casa de parentes, para poder resgatar, com muito cuidado, os selos que ali estivessem.

Na primeira semana, a mão doía de tanto escrever. Não me recordo ao certo, mas lembro que foram muitas as cartas.

Nas semanas que se seguiram, comecei a receber as respostas de algumas embaixadas, geralmente com alguma mensagem de incentivo e, claro, selos. E a parte mais legal disso era encontrar com os amigos para mostrar, orgulhoso, as aquisições mais recentes, e aqueles selos mais raros.

E assim iniciava a minha trajetória como filatelista.

Encontros

O dia amanheceu parcialmente nublado, contrariando a previsão do tempo como de costume. Com a temperatura mais amena, decidi ir caminhando para o trabalho.

Numa das calçadas do percurso, geralmente, passo exatamente em frente ao Centro de Convivência da Terceira Idade (confesso que esse nome poderia ser melhor. Mas essa é uma outra conversa…).

Naquele horário, acredito que por ter recém encerrado alguma atividade, havia uma grande concentração de frequentadores na saída do local.

Passando pelos pequenos grupos que se espalhavam ao longo do passeio, cumprimento com um bom dia. Como apreciador do comportamento e da vida idosa, tento seguir um pouco atrás para “pescar” o que conversam.

Num grupo junto ao portão, um senhor tosse enquanto o outro aconselha sobre um xarope.

A minha frente vai um trio cuja conversa fluía na seguinte direção. "Nossa, ele entrou na hemodiálise ontem. Tá bem ruinzinho, coitado".

Ultrapasso lenta e gentilmente.

Mais a frente uma dupla conversa, e uma das senhoras diz à outra. "E dói, não é menina?! Eu também já fiz esse tratamento".

"Nem me fala…"

A cada passo, aquelas pessoas iam ficando um pouco mais para trás, mas as conversas se mantinham no mesmo contexto. Elas passam e eu prossigo carregando um pouco delas comigo.

Vou adiante me perguntando: "será esse o 'rumo de nossas prosas' depois de chegarmos à velhice?".

Claro, sem generalizações, mas já notou como parece lugar-comum encontrarmos pessoas idosas falando sobre doenças, comprometimentos de saúde e tratamentos? Inclusive, muitas delas se mostram monotemáticas e até extasiadas nesse sentido.

Será que é este o caminho a seguir no processo de nosso envelhecimento, ou seja, colecionar histórias sobre dores, doenças e tratamentos? Entrar em competições para saber quem sente ou sentiu mais incômodos ou tem de lidar com mais doenças?

...encontrar com os amigos para mostrar, orgulhoso, as aquisições mais recentes, e aquelas doenças mais raras?

Verdadeiras coleções!

Será essa a tônica dos “papos de velhos”?

Penso sobre o quanto esse “papo” está relacionado, ou melhor, é fruto de nossas trajetórias de vida, as mesmas que nos levam até a fase da velhice. Porque até que nos tornemos idosos, viveremos várias doenças e tratamentos, passaremos por desafios, desprazeres e perdas; mas também, adaptações, realizações, superações e prazeres.

Mas o quanto estamos atentos a essas nuances? O quanto nos apegamos (cartesianamente) a um ou a outro ponto?

Os pronto-socorros lotam de pessoas, e muitas são idosas, que não necessariamente carregam algum adoecimento do corpo. Buscam apenas serem “escutadas” (e não somente auscultadas) e a doença, se apresenta como um “caminho” para esse acolhimento necessário. A doença não é do corpo, mas da alma e a cura não vem em cápsulas.

E aqui então, ao que me parece, novamente se apresentam questões de escolha!

Onde estamos investindo (tempo) para a nossa velhice? E isso versa sobre o que queremos viver para poder falar a respeito quando passarmos de nossa sexta década de vida. Vida ou doença?

Afinal, contar histórias é reviver memórias; e se a memória é como “uma ilha de edição” (como diria Wally Salomão), podemos então escolher o que queremos (re)viver e contar ao longo da jornada.

…seguindo a caminhada, mudando de calçada, lhe pergunto: você tem ou já teve o hábito de colecionar alguma coisa?

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.