O povo brasileiro surgiu na história durante o processo de desagregação do regime escravista. Assim constatou um dos maiores sociólogos brasileiros e do mundo, Florestan Fernandes, dizendo – inclusive – que a análise da sociedade brasileira por que se dedicou nas décadas de 1950-60 teve como objeto as pessoas negras, pois foram elas o “contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil”. Isso significa que a população negra é o “elemento índice” para compreender o quanto o país avançou, ou não, no que se refere ao seu regime democrático.
Neste sentido, é preciso pensar como eram as condições de vida da população negra dentro do regime escravista. É claro que a questão principal, a da liberdade formal, foi uma conquista, contudo, se pensarmos as condições de vida em geral, alimentação, emprego e condições de trabalho, assassinatos, encarceramento e outros tipos de violências, esta é a população mais atingida ainda hoje. E quando se trata de violência contra a população negra o Estado tem se destacado nessa função histórica.
Afinal, não é novidade que o Estado brasileiro direcionou historicamente a sua violência contra a população negra. Quando pensamos na escravização, foi violência legitimada pelo Estado. E se analisarmos o momento imediatamente posterior à escravidão, a violência de Estado opera em diferentes sentidos, até hoje.
O primeiro refere-se à aparente ausência. O Estado brasileiro quis deixar, e deixou, todas as pessoas negras para morrer. Nenhuma política foi direcionada para atender às necessidades da população negra. Não fosse isso o suficiente, passou a financiar a imigração de pessoas brancas a fim de substituir toda força de trabalho e fazê-las desaparecer.
O segundo sentido da violência de Estado, somado às ausências, é a violência aberta e a criminalização. Afinal, logo após a Abolição oficial as pessoas negras estavam entregues à própria sorte e, além disso, mesmo aquelas que já eram livres perderam seus postos de trabalho para os imigrantes brancos.
Isso fez com que a população negra, principalmente a masculina, ficasse pelas ruas, perambulando sem trabalho. Foi aí que passaram a tipificar o crime de vadiagem, já no Código Criminal de 1890, e a prender os homens negros que não conseguiam trabalhar. Ou seja, além do abandono, da violência policial presente no pós-escravidão, passa a existir uma tipificação criminal para controlar e aprisionar a população negra que tentava sobreviver.
Diante disso, é possível entender que a violência do Estado brasileiro sempre se voltou contra a população negra. Durante a escravização e depois dela. Neste sentido, não é novidade a violência que tem sido operada pelas Polícias Militares país afora. Portanto, as mortes do Guarujá, as da Bahia, as constantes do Rio de Janeiro, as do Espírito Santo e as de todos os estados do país também não são uma surpresa. Elas são uma extensão do tratamento que foi sempre dado ao povo.
Diante desses fatos, é possível dizer que o Brasil avançou pouco no que se refere ao seu regime democrático. Como disse Florestan Fernandes, se as condições de vida da população negra não avançam, significa que o regime democrático brasileiro, dentro dos seus pressupostos, não atingiu os seus objetivos. E isso é o que está em xeque diante da matança indiscriminada de pessoas negras que está acontecendo no Brasil. Portanto, é preciso rediscutir a sociedade brasileira. É preciso querer um país de fato democrático.
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