Eu sei que amanhã, 23 de maio, é um dia de festa cívica e júbilo para o povo capixaba, entretanto vou pedir licença para, não digo estragar a efeméride, mas apenas para levantar uma modesta discussão que me ocorre há muitos anos: me constrange muito o caráter celebrativo e ufanista da chamada Colonização do Solo Espírito-Santense. Minha consciência me incomoda. Não me sinto à vontade nesta festa.
Antes da reflexão propriamente dita, me apresento para que estas palavras não soem como proferidas por um estrangeiro distante e insensível às tradições e à cultura da nossa gente.
Tenho 58 anos de vida e de Espírito Santo, me orgulho de ser capixaba, vila-velhense e brasileiro, tenho também cidadania portuguesa (a mesma do colonizador), herança da minha saudosa mãe natural da Ilha da Madeira, e, por um capricho do destino, moro na Rua Vinte e Três de Maio, no coração do Sítio Histórico da Prainha.
Feitas as apresentações, volto ao assunto que me motivou a fazer este texto. A meu juízo, a Colonização do Solo Espírito-Santense é, na essência, uma festa cívica que celebra o massacre de um povo europeu, com sua arrogância e crueldade, contra os povos originários que aqui viviam.
É difícil mensurar a quantidade exata, mas não é preciso fazer muito esforço de pesquisa historiográfica para ter a certeza de que milhares de indígenas foram mortos desde aquele longínquo 23 de Maio de 1535. Debaixo do asfalto onde tropas militares e estudantes desfilarão garbosamente nesta quinta-feira, há muito sangue derramado.
A gente até aprende nos livros e bancos escolares que a primeira capital do Espírito Santo, nos primórdios da colonização, deixou de ser Vila Velha porque os indígenas que aqui habitavam eram muito “selvagens”, “hostis”.
Parece piada, mas é exatamente isso: chamamos de “selvagens”, “violentos”, aqueles que não se conformaram em ser espoliados e massacrados no fio da espada pelos “civilizados” cristãos europeus.
A propósito, vejam o que diz o trecho de um texto sobre a colonização, publicado no site oficial do Governo do Estado do Espírito Santo: “Como em Vila Velha não oferecia muita segurança contra os ataques dos índios que habitavam a região, Vasco Coutinho procurou em 1549 um lugar mais seguro e encontrou numa ilha montanhosa onde fundou um novo núcleo com o nome de Vila Nova do Espírito Santo, em oposição ao primeiro, que passou a ser chamado de Vila Velha. As lutas contra os índios continuaram até que, no dia 8 de setembro de 1551, os portugueses obtiveram uma grande vitória e, para marcar o fato, a localidade passou a se chamar Vila da Vitória e a data como a de fundação da cidade”.
“Ataques dos índios”; “lutas contra os índios”; “os portugueses obtiveram uma grande vitória”... Quer dizer então que, com a chancela oficial, ficamos sabendo que os indígenas foram os culpados de não aceitarem a submissão ante o invasor?
Então, fica combinado assim: se os indígenas canelas-verdes da época fossem mais dóceis com Vasco Fernandes Coutinho e seus comandados - muitos deles degredados por motivos pouco nobres -, talvez até hoje as terras continentais ao sul da “Ilha do Mel” continuariam a exibir a orgulhosa condição de capital da Capitania Hereditária - ou melhor, do Estado do Espírito Santo.
“A chegada de Vasco Fernandes Coutinho, o primeiro donatário da Capitania do Espírito Santo, em 1535, marcou o início da conquista e colonização do atual Estado e representou um apocalipse para os povos indígenas que aqui viviam. Estes perderam seu território, sua cultura, foram massacrados, torturados, mortos e, principalmente, esquecidos no processo complexo que é a formação do povo brasileiro”, sustentam Izabel Maria da Penha Piva, mestre em História pela Ufes, e Rogério Frigerio Piva, graduado em História pela mesma universidade e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, em texto conjunto publicado no site Rede Notícia.
É disso que se trata: na perspectiva do gentio que aqui vivia (e eram milhares, segundo consta), a colonização do Espírito Santo é um autêntico genocídio. Aliás, mais um na longa trajetória da civilização humana.
Claro que, passados quase cinco séculos, o mundo e o Espírito Santo evoluíram no sentido de se tornarem sociedades mais complexas; não é o caso, por óbvio, de retornar àquela condição de vida primitiva porque isso não seria mais possível. Nenhum capixaba que habita estas terras hoje precisa fazer um ato de contrição e se penitenciar por ser descendente, direta ou indiretamente, do colonizador.
No entanto, é preciso refletir sobre a sociedade que estamos construindo. Sim, porque no passado foram os indígenas, mas no mundo moderno e tido como civilizado a opressão e a discriminação ainda pairam sobre vastas camadas sociais, como os mais pobres, os negros e as chamadas minorias. A elite política, econômica e social insensível e excludente é o colonizador dos tempos atuais.
E em defesa destes “indóceis” e “selvagens” das periferias e das comunidades esquecidas e abandonadas à própria sorte, recorro ao poeta Cazuza: “Não me convidaram/Pra esta festa pobre/Que os homens armaram/Pra me convencer…”
Definitivamente, não me convenceram.
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