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Colonização do Solo Espírito-Santense: uma celebração ao massacre

Data cívica capixaba, que será comemorada nesta quinta-feira (23), esconde uma história de violência, dor e exclusão perpetrada pelo colonizador contra os povos originários

Vitória
Publicado em 22/05/2024 às 03h11
Detalhe da estátua do donatário Vasco Fernandes Coutinho exposta na Casa da Memória de Vila Velha
Detalhe da estátua do donatário Vasco Fernandes Coutinho exposta na Casa da Memória de Vila Velha. Crédito: Arte Pública Capixaba

Eu sei que amanhã, 23 de maio, é um dia de festa cívica e júbilo para o povo capixaba, entretanto vou pedir licença para, não digo estragar a efeméride, mas apenas para levantar uma modesta discussão que me ocorre há muitos anos: me constrange muito o caráter celebrativo e ufanista da chamada Colonização do Solo Espírito-Santense. Minha consciência me incomoda. Não me sinto à vontade nesta festa.

Antes da reflexão propriamente dita, me apresento para que estas palavras não soem como proferidas por um estrangeiro distante e insensível às tradições e à cultura da nossa gente.

Tenho 58 anos de vida e de Espírito Santo, me orgulho de ser capixaba, vila-velhense e brasileiro, tenho também cidadania portuguesa (a mesma do colonizador), herança da minha saudosa mãe natural da Ilha da Madeira, e, por um capricho do destino, moro na Rua Vinte e Três de Maio, no coração do Sítio Histórico da Prainha.

Feitas as apresentações, volto ao assunto que me motivou a fazer este texto. A meu juízo, a Colonização do Solo Espírito-Santense é, na essência, uma festa cívica que celebra o massacre de um povo europeu, com sua arrogância e crueldade, contra os povos originários que aqui viviam.

É difícil mensurar a quantidade exata, mas não é preciso fazer muito esforço de pesquisa historiográfica para ter a certeza de que milhares de indígenas foram mortos desde aquele longínquo 23 de Maio de 1535. Debaixo do asfalto onde tropas militares e estudantes desfilarão garbosamente nesta quinta-feira, há muito sangue derramado.

A gente até aprende nos livros e bancos escolares que a primeira capital do Espírito Santo, nos primórdios da colonização, deixou de ser Vila Velha porque os indígenas que aqui habitavam eram muito “selvagens”, “hostis”.

Parece piada, mas é exatamente isso: chamamos de “selvagens”, “violentos”, aqueles que não se conformaram em ser espoliados e massacrados no fio da espada pelos “civilizados” cristãos europeus.

A propósito, vejam o que diz o trecho de um texto sobre a colonização, publicado no site oficial do Governo do Estado do Espírito Santo: “Como em Vila Velha não oferecia muita segurança contra os ataques dos índios que habitavam a região, Vasco Coutinho procurou em 1549 um lugar mais seguro e encontrou numa ilha montanhosa onde fundou um novo núcleo com o nome de Vila Nova do Espírito Santo, em oposição ao primeiro, que passou a ser chamado de Vila Velha. As lutas contra os índios continuaram até que, no dia 8 de setembro de 1551, os portugueses obtiveram uma grande vitória e, para marcar o fato, a localidade passou a se chamar Vila da Vitória e a data como a de fundação da cidade”.

“Ataques dos índios”; “lutas contra os índios”; “os portugueses obtiveram uma grande vitória”... Quer dizer então que, com a chancela oficial, ficamos sabendo que os indígenas foram os culpados de não aceitarem a submissão ante o invasor?

Então, fica combinado assim: se os indígenas canelas-verdes da época fossem mais dóceis com Vasco Fernandes Coutinho e seus comandados - muitos deles degredados por motivos pouco nobres -, talvez até hoje as terras continentais ao sul da “Ilha do Mel” continuariam a exibir a orgulhosa condição de capital da Capitania Hereditária - ou melhor, do Estado do Espírito Santo.

“A chegada de Vasco Fernandes Coutinho, o primeiro donatário da Capitania do Espírito Santo, em 1535, marcou o início da conquista e colonização do atual Estado e representou um apocalipse para os povos indígenas que aqui viviam. Estes perderam seu território, sua cultura, foram massacrados, torturados, mortos e, principalmente, esquecidos no processo complexo que é a formação do povo brasileiro”, sustentam Izabel Maria da Penha Piva, mestre em História pela Ufes, e Rogério Frigerio Piva, graduado em História pela mesma universidade e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, em texto conjunto publicado no site Rede Notícia.

É disso que se trata: na perspectiva do gentio que aqui vivia (e eram milhares, segundo consta), a colonização do Espírito Santo é um autêntico genocídio. Aliás, mais um na longa trajetória da civilização humana.

Desfile em comemoração ao Dia da Colonização do Solo Espírito-Santense em Vila Velha
Desfile em comemoração ao Dia da Colonização do Solo Espírito-Santense em Vila Velha . Crédito: Ricardo Medeiros

Claro que, passados quase cinco séculos, o mundo e o Espírito Santo evoluíram no sentido de se tornarem sociedades mais complexas; não é o caso, por óbvio, de retornar àquela condição de vida primitiva porque isso não seria mais possível. Nenhum capixaba que habita estas terras hoje precisa fazer um ato de contrição e se penitenciar por ser descendente, direta ou indiretamente, do colonizador.

No entanto, é preciso refletir sobre a sociedade que estamos construindo. Sim, porque no passado foram os indígenas, mas no mundo moderno e tido como civilizado a opressão e a discriminação ainda pairam sobre vastas camadas sociais, como os mais pobres, os negros e as chamadas minorias. A elite política, econômica e social insensível e excludente é o colonizador dos tempos atuais.

E em defesa destes “indóceis” e “selvagens” das periferias e das comunidades esquecidas e abandonadas à própria sorte, recorro ao poeta Cazuza: “Não me convidaram/Pra esta festa pobre/Que os homens armaram/Pra me convencer…”

Definitivamente, não me convenceram.

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