A vida de uma criança, aparentemente, só tem valor para algumas pessoas antes de a criança ganhar vida. Enquanto for um feto, sua existência é sagrada, mas alguns anos após nascer, se a criança for estuprada, tudo bem obrigar seu pequeno corpo a parir, com todos os riscos que isso envolve. Ela ainda pode ser chamada de "mãe" e o estuprador, de "pai".
Foi isso que ocorreu na audiência em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, induziu uma menina de 11 anos a não realizar o aborto, frise-se, legal a que teria direito para ao menos evitar outra dor e outro trauma após a violência sofrida.
Zimmer, conforme foi relevado por reportagem do Intercept Brasil em parceria com o Portal Catarinas, perguntou à criança se ela "suportaria ficar mais um pouquinho" grávida e se queria escolher o nome do "bebê".
A juíza ainda se mostrou preocupada com a vontade do estuprador, para ela, o "pai". "Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?", perguntou à menina de 11 anos. A essas questões ela respondeu "não" e "não sei".
Para a mãe da criança estuprada, a magistrada foi além, falou que tudo isso resultaria em "felicidade": "Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”.
Ela respondeu, aos prantos: “É uma felicidade, porque não estão passando o que eu estou”.
Exatamente.
A juíza ainda mandou a menina para um abrigo para impedir que o aborto, novamente, destaque-se, permitido por lei, sem necessidade de autorização judicial, ocorresse.
“O fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê", escreveu, em decisão proferida.
Esses "diálogos", se assim se pode chamar, foram amplamente divulgados pela imprensa e chocaram boa parte dos leitores. Alguns, no entanto, defendem a postura da juíza, defendem "a vida".
"O fato", como registrou a magistrada, é que a única criança em questão, a que nasceu e está neste país em que a barbárie foi naturalizada, foi submetida a uma sessão de tortura psicológica.
Tudo isso, que precisei rememorar aqui não sem sentir tristeza e nojo, lembra outro caso, ocorrido em São Mateus, no Espírito Santo, há dois anos.
Uma menina de dez anos, estuprada pelo tio, de 33, estava grávida e, assim como a criança de Santa Catarina, pela lei brasileira, tinha direito ao aborto.
A criança capixaba e a família dela foram vítimas de uma turba de supostos religiosos e a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, enviou uma suspeitíssima equipe a São Mateus.
O modus operandi é bem similar.
O TEMPO DE GESTAÇÃO
Da mesma forma, como ocorreu agora no estado do Sul, o hospital a que a menina estuprada em São Mateus foi levada pela família se recusou a realizar o procedimento, sob a alegação que há havia passado o tempo de gestação em que a regra permite o aborto. A juíza Zimmer também se baseia nesse entendimento.
A verdade, no entanto, é que a lei não estipula tal prazo.
No caso capixaba, a criança estava com 22 semanas e 4 dias de gestação.
O Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), em Vitória, recusou-se a realizar o aborto alegando que “a idade gestacional não estava amparada pela legislação vigente”.
Só que não existem essas balizas, legalmente. Mesmo em relação ao quadro de saúde não haveria impedimento.
Tanto que, depois da recusa do Hucam, a menina de São Mateus conseguiu realizar o aborto em um hospital no Recife, com autorização judicial, embora seja cansativo dizer que ela nem precisava desse aval, que já lhe é garantido por lei.
Antes disso, no entanto, os dados da menina, sigilosos, foram vazados. A casa da família dela recebeu a "visita" de religiosos, entre eles um integrante do PSL que foi candidato a vereador, para pressionar que o aborto não fosse realizado.
Já a então ministra Damares, de acordo com reportagem do jornal "Folha de S. Paulo", coordenou uma operação para que a criança estuprada fosse levada a um hospital de São Paulo e lá aguardasse até dar a luz a outra criança.
Não se trata de um caso isolado ou dois casos isolados. "O fato" é que uma espécie de teocracia, ou "atrasocracia", com amparo em segmentos da Justiça e da política, tenta se impor em pleno século XXI no Brasil. As sequelas são deixadas não apenas nas crianças vítimas, mas também na sociedade.
E há ainda quem tente "faturar" eleitoralmente em cima dessas tragédias, arvorando-se "defensor da vida" em busca do voto do "cidadão de bem".
A criança vítima de violência sexual e psicológica em Santa Catarina já deixou o abrigo e está com a mãe. De acordo com o Ministério Público Federal, ela conseguiu fazer o aborto legal na quarta-feira (22) à noite.
A juíza Joana Ribeiro Zimmer, que tem ampla experiência na área da Infância e Juventude, disse, em entrevista ao Diário Catarinense, não ser contra o aborto, "só que o aborto passou do prazo" e afirmou ter "completa tranquilidade" sobre o que fez.
Antes de proferir a decisão sobre o caso, ela já havia obtido uma promoção e agora foi transferida de Vara. Zimmer é investigada pela Corregedoria do Tribunal de Justiça de Santa Catarina devido à conduta em relação à criança estuprada. Isso apenas depois que tudo veio a público por meio da imprensa.
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