Era um domingo à noite, quase hora da pizza, quando cheguei na casa dos meus pais com as crianças. No meio do papo com meu pai, perguntei sobre um certo livro e ele me disse estava em alguma prateleira do lado direito da estante –– meu pai tem uma biblioteca em casa, com escada e tudo. Procurando, passei a mão por diversas lombadas de títulos interessantes e achei uma caixa de sapatos. Abri com cuidado, e lá estava uma porção de retratos quadrados de cores desbotadas. Apanhei a caixa, desci a escada e me sentei no chão.
Eram fotos da época em que meus pais eram solteiros. Havia também fotos do tempo de recém casados. Fotos de viagens com os amigos e até uma carteira de estudante da universidade de artes com o nome de solteira da minha mãe.
Fiquei ali sorvendo as lágrimas –– porque assim são os nostálgicos –– e, ao mesmo tempo, viajando nas possíveis histórias por trás das imagens... Porque assim sou eu.
Naquela época as fotos eram reveladas em laboratório. Pensa, ir apanhar as revelações era uma espécie de descoberta. Primeiro porque não tinha como saber exatamente como as imagens haviam sido capturadas –– se ficaram bonitas, bem enquadradas, com foco ou não; depois, porque era invariavelmente um retorno ao passado, já que havia sempre um espaço de tempo entre a captura e sua transformação em retrato.
Na fase analógica da fotografia não tinha como fazer uma pré-edição das fotos como fazemos hoje. Aliás, agora editamos enquanto fotografamos e vivemos esse fazer de modo integrado: tudo junto e misturado. E mais, acaba sendo rara a hora em que voltamos a rever nossas fotos, de tanto que temos acumulado.
De um modo ou de outro, quanto mais antigo o registro, mais emocionante, mais fiel o espanto, e mais enigmático.
Nas fotos da minha mãe, muitas delas do seu tempo de intercâmbio em Nova Iorque, ela sorria largo. Tão linda... De sobretudo, sob a neve, entre amigos, gargalhando na pista de patinação. Tem também uma sequência de cantores performáticos vestidos com collants brancos, feitas em alguma espécie de discoteca. Tem as fotos do meu pai com corpo jovem, bem magrinho, de sunga, passando protetor solar nos braços. Tem meu pai na arquibancada de uma arena na Espanha, assistindo uma tourada. Tem imagens dos almoços de domingo na casa do vovô Fernando, quando eu ainda nem tinha nascido. Tem os dois numa gôndola em Veneza... Os dois passeando de mãos dadas pela orla de Camburi. Tem nossa primeira casa e tem um balde cheio de saudades do que eu não vivi, literalmente. Ainda assim, é tudo tão familiar pra mim.
Não sei explicar esse sentimento que acha o passado magnífico... Mas desconfio que não seja só nostalgia. Talvez tenha a ver com algum processo alquímico. Veja, é da natureza da nossa mente trabalhar com imagens porque ela é basicamente pictórica. Além disso, todo nosso sistemas de crenças, e nossa fé, também é mapeado e adensado a partir da narrativa das histórias que nos são contadas e das consequentes imagens por elas formadas.
Então, por exemplo, uma história ancestral contada em família repetidas vezes, através de fotos ou com mesmo só com palavras, se consagra. Ou seja se transforma: passa a existir no reino das imagens em cores, texturas, cheiros e formas. Revela, aponta, instaura.
Eu mesma, desde que encontrei essa caixa, adquiri forças novas.
Amparada por outras justificativas, inspirações e respostas para ser quem sou, quem fui e aquela que pretendo um dia meus filhos vejam constituída na foto da caixa que só o futuro guarda.
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