Introdução. Nasce um bebê. Tudo que o banha, o constitui. O olhar da mãe, o cheiro de leite que avança pelas entranhas, a água morna de lavanda. Neste glorioso momento de construção, tudo é sensação e gozo – da ordem do indizível – de tão maravilhoso.
Balbucio, "despalavra", "desvisão" – do verbo revirar de olhos. Mas passa. Pouco a pouco, a linguagem se instaura, e com ela seus acessórios mecânicos: a intenção e a palavra. O mundo vai ganhando contornos; alguma razão de explica; nascem verdades e mentiras; e a mente que antes apenas reagia, passa a elaborar alguma significação.
O indizível, contudo, resiste.
Escondido nas profundezas, nos habita. E ao longo de toda vida – por mais erudito, ou lunático que se possa ser – de vez em quando, este indizível glorioso surge no relâmpado de um gozo. Acende e apaga, tilinta.
Você já leu uma poesia irreversível? Dessas que invadem e ateiam fogo na lona do circo? Dessas que depois, nunca mais a mesma pessoa? Claro, isso também pode acontecer com uma imagem ou uma canção. Com uma obra de arte, uma visão, um beijo na boca, um aperto de mãos. Não importa. Interessa apenas dizer que certos barcos que nos atravessam, arrastam o fundo. Ressoam, arranham e acordam a velha, primitiva sensação. Indizível. Por um instante marca. Um ponto e vírgula. É a presença da falta.
– Mas o que um poeta de verdade ensina com esse chamado que acorda o imemorável?
Ensina nada. Mas arrasta, traz à luz, conduz ao espanto, revira os olhos da alma por ordem de comando.
O poeta verdade, invade.
Capitulo primeiro. Te espero no cinema. As luzes apagadas, aquele rangido crocante de pipoca mastigada, e a tela colorida de coisas que ainda não me interessam. Quero nada disso – mas você aqui. Chegou uma pessoa na minha fileira. Olhei devagar, com aquela certeza... Só que não. Falhei em disfarçar a decepção. "Perdoa? Não queria ter dado a impressão de que me irritou. Você que chegou até pode ser bem-vindo – mas não me transfere aquilo que preciso" – não disse, mas pensei. Uma música na abertura do filme quase me leva... Tomo de volta a tensão. A porta entreaberta, a escada escura e a satisfação irritante do resto desse salão. A falta, imóvel, me ataca: pesada, refastelada na poltrona ao lado, chupando os dentes e coçando o saco.
Alguém que conheço de vista sobe as escadas me sorrindo com simpatia de repartição. Aceno com desgosto infantil. – Como o velho poeta, confesso: "os normais me parecem insinceros".
Delírios se sucedem na tela. Delírios (sempre) me interessam. De repente, sua ausência se levanta, deve ter ido comprar chicletes. O filme começa a ficar bom. (Viu, tudo concorre com a tecnologia – até você).
Começo a gostar de gostar do enredo, tenho talento para isso. Fui me envolvendo com aquele personagem ruivo-salmão. Tão certo de seu trilho de palavras. Tão claro em seu talho, esculpindo o que fica com a falta. Esqueci do tempo. Reencontrei minha pipoca, meus lábios, o escuro, a escuta. Muito prazer!
– Diacho! Quando olho pro lado, no lugar da ausência, agora descansa sua majestade, a Culpa – essa safada! Fumando um cigarro, de salto alto e pernas cruzadas.
Passos apressados sobem a escada. É você. (Relâmpago).
Capitulo final. Indizível é a poesia (a do poeta e a da vida). A afetação que em nós convoca o inaugural, o invisível, o indizível. Lugar do amor (original). Lugar, sem lugar. Raiz da mata. Presença da falta.
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