É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Não pretenda o presente

Os olhos de Marinete cuspiam faíscas de ansiedade, e o trabalho para abrir o embrulho fez a moça explodir num surto de decisão, e pedir uma faca

Publicado em 20/12/2020 às 05h00
Atualizado em 20/12/2020 às 05h01
Anjo com vela e rosa
Marinete foi até a sala, sentou-se no sofá, cruzou as pernas, apanhou o anjo e descobriu cravado na parte de baixo da madeira o seguinte recado: “Meu amor, esse anjo não caiu do céu. Não é valioso, nem nada. Mas é a semente da minha intenção de te proteger e, quem sabe, passar o resto da vida dormindo ao seu lado”. Crédito: Shutterstock

(Aceite.)

Ela sorria. Estava contente e achando graça da própria dificuldade em abrir o embrulho. Além de duas camadas de papel celofane, aquele plástico transparente que faz um barulho irritante, o presente ainda estava amarrado com largas fitas de cetim azul claro. Era impossível rasgar aquele raio de plástico e, para piorar, a fita deu um nó quando ela tentou desatar o laço.

Os olhos de Marinete cuspiam faíscas de ansiedade, e o trabalho para abrir o embrulho fez a moça explodir num surto de decisão, e pedir uma faca.

Era a noite do seu aniversário, e Marinete queria que tudo fosse perfeito, do jeitinho que havia planejado. Ah... Pobre Ariovaldo, seu novo namorado. O moço nem sequer imaginava o grandessíssimo posto que seu presente ocupava.

Ela esperava, sinceramente, que ele a tivesse escutado quando disse, diante da vitrine da loja, na noite em que foram ao cinema do shopping, que desejava ardentemente um certo sapato.

Mas nessa hora, enquanto Marinete apontava, comentando o maravilhoso estilo do salto, Ariovaldo, que balançava a cabeça e suspendia as sobrancelhas como se também estivesse entusiasmado, estava, na verdade, fazendo uns cálculos:

“O filme acaba às oito e meia, então eu só tenho meia hora para chegar em casa e pegar o comecinho do jogo. É melhor a gente comer agora, se não depois ela vai querer ir jantar fora”.

E, assim, ele puxou a moça pela mão dizendo: “Vamos indo meu bem, estou morrendo de fome. Quero a maior pipoca!”

E ela ficou achando que ele, de fato, entendera o recado, e que a mudança repentina de assunto havia sido um providencial disfarce.

Meteu a faca na fita, e foi abrindo a caixa, que era mesmo de sapato. Sorrindo feito criança, ela levantou a tampa para descobrir, enrolado num finíssimo papel de seda, uma escultura de madeira.

“Ah... Um anjo. Que bonito Ari. Não precisava.”

“É pra você colocar no quarto, do lado da cama!”

“Ah, bacana.”

Marinete não sabia o que dizer. Não soube fingir alegria, nem tampouco esconder sua decepção pueril.

Colocou o anjo em cima da mesa, foi até o quarto, descalçou o chinelo de dedos que usava, calçou um sapato alto, apanhou a bolsa e foi dizendo, com a cara fechada, “então vamos”.

Mas Ariovaldo, que não estava convencido, quis saber qual era o problema, e por que, afinal, o anjo a havia desapontado tanto.

“O que foi meu amor? Não gostou? Eu encomendei esse anjo de um artesão, por que você me disse que não gostava de dormir sozinha. Ele serve para proteção”.

Mas Marinete não ponderou. Só pensava no sapato com que tanto sonhava e que não tê-lo ganhado era uma falta de atenção.

“Não é nada Ari... É que eu não precisava de um anjo, é isso. Pronto.”

“Eu posso trocar”,  disse ele, resignado.

“Não adianta Ariovaldo. A não ser que esse tal artesão saiba fazer sapatos”.

Ele ficou sem entender nada, e ela, secretamente, envergonhada.

Foram jantar fora e passaram a noite sem trocar muitas palavras.

Mais tarde, quando chegou em casa, Marinete ignorou o presente, foi direto para o quarto, abriu seu armário, abarrotado de sapatos, e guardou o par que usava. Sentia-se mal. Sabia perfeitamente que havia magoado o namorado.

Foi até a sala, sentou-se no sofá, cruzou as pernas, apanhou o anjo e descobriu cravado na parte de baixo da madeira o seguinte recado:

“Meu amor, esse anjo não caiu do céu. Não é valioso, nem nada. Mas é a semente da minha intenção de te proteger e, quem sabe, passar o resto da vida dormindo ao seu lado”

Infelizmente, Marinete pretendia o presente.

Não teve sabedoria para perceber o afeto e a intenção de Ariovaldo, que, no fundo, além de tudo, pretendia o futuro.

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